Por Hector Leis*
A legitimidade da democracia não parece ser contestada por ninguém nos dias de hoje. Mas o mesmo não acontece com seu exercício. O debate sobre a democracia que demanda o século XXI não é sobre sua legitimidade, mas sobre a sua qualidade e condição de existência. Alguns analistas observam que na primeira década deste século houve um processo de relativa erosão da democracia no mundo, em função do crescente autoritarismo e anomalias de funcionamento que se desenvolveram no interior de um importante número de democracias. A diferenciação teórica e prática entre democracia e autoritarismo nunca foi tão difícil de ser feita como hoje, na medida em que suas características antagônicas nem sempre se encontram separadas em regimes opostos, se não muitas vezes convivendo dentro do próprio regime democrático.
Como foi possível isto? Explicar essa circunstância torna necessário repensar o conceito de democracia realmente existente no século XXI. De fato, faltam elementos teóricos para entender as mudanças da democracia contemporânea. O cumprimento das formalidades da democracia representativa não é garantia suficiente para inibir um exercício do poder que despreze tanto os controles institucionais como os marcos constitucionais. No entanto, a crescente desconformidade dos cidadãos com a moral cívica dos seus representantes, não os leva a expressar sentimentos antidemocráticos. A impunidade dos representantes políticos na prática corrupta do poder público, seja em beneficio pessoal e/ou do partido governante, se constitui cada vez mais num fato corriqueiro da vida das democracias emergentes.
Em América Latina, nos anos 70 e 80 do século passado, a demanda democrática contra os regimes militares foi simbolizada, em geral, no pedido de eleições imediatas. Isso criou um imaginário democrático enviesado, por assim dizer. Já que a democracia era identificada quase exclusivamente com a existência de eleições para a escolha de representantes. Mas o exercício de uma boa democracia supõe muito mais que o funcionamento de uma democracia representativa em sentido estrito. As democracias orientadas pela vontade das maiorias nem sempre garantem um bom governo. A história política das nações mostra que o primeiro passo claro na direção da democracia moderna foi constitucional. Sem a adoção de uma constituição que garantisse direitos universais aos indivíduos nenhuma democracia moderna seria possível. A saída dos “antigos regimes”, marcados pelos privilégios das “classes nobres”, exigia esta reforma. Mas uma Carta Magna universalista e republicana não é apenas um pré-requisito para a existência de eleições, seu efetivo cumprimento é também uma condição essencial para o bom exercício da democracia.
Isto quer dizer que num sistema político onde seus dirigentes possuem impunidade para violarem a lei, não respeitando os direitos individuais ou das minorias, a vontade política da maioria expressada através do exercício eleitoral não pode ser considerada autenticamente democrática. O que garante a legitimidade democrática, em última instância, é o rigor do Estado de Direito. A anomalia de muitas democracias emergentes é que seu mecanismo de representação se exerce em contextos onde existe uma fragilidade crescente do Estado de Direito que, além de afetar o exercício de liberdades básicas, deixa sem controle efetivo o funcionamento dos partidos e os financiamentos das campanhas, permitindo também um comportamento colonizador do Poder Executivo com os restantes poderes, a personalização da política e o uso escandaloso dos meios de comunicação de massa para fazer o “endeusamento” de determinadas figuras públicas. A fragilização do Estado de Direito age assim diretamente sobre a cultura política produzindo apatia política em alguns e ressentimento em outros, transformando o ato eleitoral numa simples troca de favores entre os políticos e os eleitores.
O populismo tem sido muitas coisas ao longo da história e por esse motivo nem sempre os cientistas políticos gostam de utilizar este conceito. Tem sido de direita e de esquerda, democrático e não-democrático, mas em todos os casos, sem exceção, suas práticas apelam à suposta legitimidade política da maioria contra os rigores da lei. Na visão populista a lei vale muito menos que a vontade da maioria. Em vez de promover o difícil equilíbrio entre a vontade da maioria e a liberdade e os direitos dos cidadãos, expressados muito especialmente na obediência à lei por parte da classe política, o populismo promove o conflito entre ambos os aspectos da democracia. As lideranças populistas surgidas de eleições podem reivindicar o caráter democrático de seu mandato apenas parcialmente. Sua utilização da vontade da maioria para não se subordinar totalmente ao rigor da lei os torna também autoritários.
A democracia tem duas caras, mas o populismo contemporâneo reivindica apenas uma. Isso traz para o interior do regime democrático uma tensão insustentável no longo prazo. A eventual presença de um líder carismático no governo pode ajudar a esconder, durante um determinado tempo, as nocivas conseqüências da ação populista, mas quando o sonho acaba fica uma democracia profundamente deteriorada para ser administrada por uma massa de cidadãos apáticos ou ressentidos, em ambos os casos sem uma cultura política respeitosa da lei. O resultado em longo prazo do populismo pode ser o catastrófico “estado de natureza”, frente ao qual tremiam os clássicos da teoria política moderna.
Hector Leis foi doutor em filosofia, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e autor de numerosos trabalhos nas áreas de filosofia política, relações internacionais, e sociologia ambiental.
Caro professor hector.
Já fui seu aluno em 1999, sempre admirei suas ideias liberais mas vejo que lhe falta um pouco mais. Não é difícil professor promover o equilíbrio entre liberdade e democracia (governo da maioria), é impossível. já deveria estar ciente disso, que são prerrogativas irreconciliáveis. Aliás, a democracia esvaziou o debate político e ideológico em todo o mundo democrático.