Que a “contabilidade criativa” é a principal contribuição da atual equipe econômica para o progresso do país não resta a menor dúvida, mas seria injusto desconsiderar demais exemplos de criatividade no setor, em particular o esforço hercúleo do Banco Central em explicar por que – a despeito de todas suas promessas – não conseguiu entregar a inflação na meta nos últimos quatro anos; e não deverá fazê-lo nem neste ano, nem em 2015.
Tempos atrás, o problema viria dos preços dos alimentos (era o “feijãozinho”, depois substituído pelo tomate). Confrontada, porém, com medidas de inflação que mostravam aceleração mesmo desconsiderando preços de alimentos, assim como aumento persistente dos preços dos serviços, a desculpa mudou.
O problema passou a ser a “resistência da inflação” resultante de “mecanismos regulares e quase automáticos de reajuste (…) que contribuem para prolongar (…) pressões inflacionárias”.
Na mais recente ata do Copom, porém, a criatividade do BC atingiu novos patamares. Segundo o documento, há “dois importantes processos de ajustes de preços relativos ora em curso na economia – realinhamento dos preços domésticos em relação aos internacionais e realinhamento dos preços administrados em relação aos livres”.
Trocando em miúdos, trata-se do impacto da desvalorização do real (durante bom tempo, diga-se, perseguida com afinco pelo próprio BC) por um lado e, por outro, a necessidade de corrigir preços que ficaram defasados em razão das medidas recentes de controles, notadamente (mas não apenas) energia e combustíveis.
De fato, em entrevista a um órgão oficial de imprensa, uma “fonte (também) oficial” (cuja linguagem próxima da ata não deixava dúvida quanto a ser um diretor do BC) afirmou candidamente que “as projeções para 2015 estão bastante sensibilizadas pela questão dos preços administrados” e que, “se a inflação de preços administrados neste ano fosse de 1,5%, perto do ano passado, em vez dos 5% esperados, a inflação ficaria um ponto percentual menor”.
A declaração é merecedora do Prêmio Nobel da Obviedade, mas, além disso, reflete a nova desculpa: a inflação não cai por causa dos preços administrados, os mesmos que – sujeitos ao controle governamental – têm sido a principal estratégia (equivocada, claro) de combate à alta do índice de preços.
É curioso, mas a “fonte oficial” não parece ter percebido que seu mesmo argumento poderia ter sido exposto como, “se a inflação de preços administrados tivesse sido de 5% em 2013 (para evitar as distorções causadas pelo controle destas tarifas), a inflação do ano passado teria sido um ponto percentual maior (isto é, 6,94%) e perderíamos inclusive o teto da meta”.
Na prática, a afirmação equivale a reconhecer que a política monetária tem sido inadequada para conter as pressões inflacionárias disseminadas observadas ao menos desde 2012, dependendo de “puxadinhos” como controle de preços.
Significa também que o BC, supostamente o responsável pela estabilidade do poder de compra da moeda, abandonou essa função há tempos.
Francamente não saberia dizer se tal posição reflete convicções da diretoria do BC ou apenas subserviência ao governo de plantão (ou ainda uma mistura das duas), mas a esta altura do campeonato a distinção é acadêmica.
O (triste) fato é que não há ninguém cuidando da inflação, que cresce, saudável e indômita, como havia tempos não se via. E, diga-se também, essa política frouxa não impediu o crescimento anêmico, que não deverá chegar à média de 2% ao ano neste governo.
Em tal contexto, é difícil evitar pensar que, caso o BC tivesse dedicado à questão uma fração da criatividade empregada na criação de desculpas, nosso desempenho poderia ter sido bem melhor do que a lastimável atuação dos últimos anos. Por outro lado, como ávido leitor de ficção e fantasia, anseio pela nova geração de desculpas a serem apresentadas mais à frente.
Fonte: Folha de S. Paulo, 18/6/2014
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