Recentemente, a Universidade de São Paulo perdeu o posto de melhor instituição de ensino superior da América Latina no respeitado ranking organizado pela consultoria britânica QS Quacquarelli Symonds. Quem assumiu o lugar é a Pontifícia Universidade Católica do Chile (UC). Segundo o reitor Ignacio Sánchez, o avanço chileno se deve a uma combinação de aumento de produtividade acadêmica e estímulo à divulgação do conhecimento. Exemplo disso é a adoção do inglês em aulas, pesquisas e até no processo seletivo da instituição: ao “falar” a língua da ciência, a produção acadêmica da UC ganha alcance e reconhecimento. É uma medida que as universidades brasileiras demoram para colocar em prática. “Nossa ciência é reconhecida cada vez mais por sua qualidade”, diz Sánchez.
O reitor virá ao Rio no fim deste mês, onde explicará as razões do sucesso da UC no “III Encontro Internacional de Reitores Universia”. Deve falar também sobre a proposta de reforma educacional em discussão em seus país. A proposta prevê, entre outras medidas, a redução dos recursos destinados à pesquisa que o governo envia a seis universidades não-estatais conhecidas no Chile como vocacionais ou comunitárias. A medida acertaria em cheio a própria UC. Sánchez discorda do governo: “O repasse de verbas deveria ser feito de acordo com a qualidade da produção científica, e não segundo o caráter estatal ou não da instituição”, diz. Outra mudança proposta pela presidente Michelle Bachelet é a universalização da gratuidade do ensino superior público: hoje, mesmo as universidades públicas cobram mensalidades. Novamente, Sánchez se opõe à reforma. “As pessoas com mais recursos terão universidade gratuita às custas das pessoas com menos recursos”, diz o reitor. Confira a seguir entrevista que ele concedeu a “VEJA.com”.
Veja: Qual o segredo da UC para assumir o posto de melhor universidade da América Latina?
Ignacio Sánchez: Há três anos, aparecíamos na segunda posição do ranking da QS, com uma pontuação bem próxima à da USP, que considero uma excelente universidade. Contudo, falhávamos ao divulgar nossas pesquisas no exterior. Tínhamos muito trabalho sendo desenvolvido, mas os métodos de apresentação eram muito diferentes em cada curso. Fizemos, então, um esforço para mudar isso. Outros dois fatores influenciaram nosso desempenho. O primeiro é a proporção de docentes por aluno. Há cinco anos, temos uma política de portas abertas que pretende aumentar o contato de estudantes com professores, inclusive após as aulas e durante o período de provas. Para tanto, foi necessário aumentar o número de professores. Hoje, são cerca de 3.200 docentes para 26.000 estudantes, uma relação de 8 profissionais por aluno [a média da USP é de 15]. O segundo fator está relacionado à pesquisa. Temos 35 programas de doutorado e desenvolvemos pesquisas em todas as áreas. A produtividade tem aumentado de maneira contínua, juntamente com os índices que medem a qualidade da nossa investigação. A UC tem o melhor índice de impacto de pesquisas da América Latina. Isso significa que nossa ciência é reconhecida cada vez mais por sua qualidade.
Veja: A UC exige que seus estudantes tenham um bom nível de proficiência em inglês. Isso tem influência na divulgação internacional das pesquisas?
Sánchez: Sim, sem dúvida. Em média, fazemos 1.500 publicações por ano, sendo que mais de 90% são em inglês. Em nossos campi, mantemos uma cultura bilíngue na pesquisa e pós-graduação. Na pós, parte das aulas é ministrada em inglês, assim como ocorre nos encontros de professores em que há convidados que não falam espanhol. Na graduação, a exigência começa no vestibular. O estudante faz dois exames: um em espanhol, de conhecimentos de linguagem e compreensão de texto, e outro sobre o domínio da língua inglesa. Esse teste avalia conhecimentos básicos e nível de compreensão de leitura técnica. Não é cobrado que o aluno consiga ler um romance complexo, mas sim que possa participar das aulas que oferecem conteúdos em inglês. Se o candidato não é aprovado em inglês, mas obteve boa pontuação no exame em espanhol, pode entrar na universidade. Contudo, tem que fazer um curso gratuito em inglês na sua área de interesse. A UC é a única que faz essa exigência na seleção de alunos.
Veja: A reforma educacional proposta pelo governo pode afetar os bons índices de desempenho da UC?
Sánchez: A reforma vai afetar todos os níveis de educação, da pré-escola à universidade. Para entendê-la, é importante fazer uma diferenciação. No Brasil, as instituições de ensino são estatais ou privadas. No Chile, além dessas, existe um terceiro tipo: são aquelas conhecidas como comunitárias ou vocacionais, que não têm fins lucrativos. Há escolas e universidades com esse perfil, como é o caso da UC. Essas instituições recebem verbas do governo para manter seu funcionamento, mas podem cobrar mensalidade dos estudantes. A rede privada não será afetada pelas mudanças propostas. Contudo, as comunitárias ou vocacionais — seis ao todo — não poderão mais cobrar mensalidades. Na prática, essas universidades, que hoje recebem suporte financeiro para manter bolsistas e para desenvolver pesquisas, passarão a receber menos recursos e poderão até deixar de receber qualquer valor. O governo ainda está detalhando as propostas e até outubro conheceremos com maior precisão o impacto das medidas.
Veja: Qual é o valor do recurso que o governo repassa à UC hoje?
Sánchez: Cerca de 42 milhões de dólares anualmente, cerca de 5% do nosso orçamento de 800 milhões de dólares. Esses 42 milhões de dólares correspondem ao dinheiro destinado aos fundos de pesquisa e à manutenção de bolsas para estudantes mais pobres. A Universidade do Chile, maior instituição de ensino superior estatal do país, recebe mais de 100 milhões de dólares por ano para a mesma finalidade.
Veja: O corte nas verbas vindas do governo pode prejudicar a pesquisa na UC?
Sánchez: Esse é um dos pontos que ainda está em debate. O governo tem sido enfático em afirmar que as instituições serão financiadas por mérito em pesquisa e que, nesse caso, não haveria diferença entre públicas e comunitárias. Porém, há também uma proposta de que a verba seja proporcional ao número de estudantes pobres que a universidade abriga. Se essa ideia prevalecer, cada instituição deverá obrigatoriamente ter ao menos 20% de estudantes provenientes de estratos econômicos mais baixos. O problema é que, nesse caso, a qualidade da pesquisa não será levada em consideração.
Veja: A qualidade da instituição poderá ser afetada?
Sánchez: Sim, o corte de incentivos prejudica a qualidade. Tirar recursos das universidades comunitárias equivale a retirar recursos do país. Isso porque essas instituições ajudam na formação profissional, no desenvolvimento da ciência e na geração de conhecimento. O ideal seria o contrário: recebermos cada vez mais apoio do Estado para financiar a pesquisa que fazemos pela inovação. Tudo o que a universidade faz em pesquisa é usado pelo país e isso deveria ser reconhecido. É claro que apenas receber recursos estatais não assegura a qualidade, porque temos, claramente, universidades que recebem mais que as outras e não transforma a verba em qualidade. Sabemos, no entanto, que realizar ciência e pesquisa depende de uma estrutura complexa, com laboratórios e bom corpo acadêmico. Isso custa muito caro.
Veja: Em 2011, milhares de estudantes chilenos tomaram as ruas do país exigindo ensino gratuito, inclusive na universidade, uma reivindicação acolhida pelo governo. Como o senhor enxerga essa questão?
Sánchez: Atualmente, 60% dos estudantes mais pobres do país têm educação praticamente gratuita. Na UC, por exemplo, um aluno desse grupo não paga quase nada, pois recebe financiamento e bolsa. A universidade recebe o dinheiro do governo para manter esses alunos. Aqueles que têm melhores condições, mas ainda enfrentam dificuldades financeiras, recebem bolsas que vão de 40% a 80% do valor das mensalidades. Só os demais alunos, aqueles que de fato podem pagar, arcam com o valor integral. Isso ocorre em todas as universidades do país, inclusive nas estatais. Nos próximos quatro anos, o governo quer elevar a gratuidade para 75% dos estudantes. A partir do quinto ano, a gratuidade deverá ser universal, tanto nas escolas de ensino básico quanto nas universidades. Acredito que seja muito importante chegar aos 70% ou 80% de gratuidade, mas por meio de créditos para os mais pobres, exatamente como é feito hoje. A educação superior é muito cara: apenas 10% da população pode pagar por ela. Agora, fazer com que toda a educação pública seja gratuita, sem distinção de classes, não é uma ideia apropriada. Estaríamos garantindo gratuidade a meus filhos, por exemplo, que não precisam dela. Nesse sentido, a gratuidade seria um retrocesso.
Veja: Como o senhor enxerga a experiência da América Latina com a gratuidade do ensino superior?
Sánchez: Sei que na USP há muitas pessoas com boa renda, que podem pagar pelo ensino. Em nossa região, porém, esse tema é carregado de visões ideológicas. No Chile, os movimentos estudantis consideram a gratuidade uma verdade inquestionável, mas não se perguntam quem estarão beneficiando. Pensam que o modelo deve ser universal e que as pessoas vão devolver através de impostos o que receberam do Estado. Isso está certo, mas também é certo que as pessoas com mais recursos vão obter benefícios às custas das pessoas com menos recursos. Eu não compartilho desse ideal. Esse tema tem sido manipulado e leva a explicações que não são claras.
Fonte: Revista Veja, 13/7/2014
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