“Se na França se falava em civilização e na Alemanha se falava em cultura no século XVIII, tinha-se em mente o desenvolvimento de uma sociedade humana de um estágio primitivo para outro mais avançado. Como porta-vozes de estratos sociais em ascensão, os intelectuais olhavam confiantes para um futuro melhor, destacando os avanços realizados pela Humanidade no passado”, registra Norbert Elias, em sua extraordinária obra “Os alemães: a luta pelo poder e a evolução dos costumes nos séculos XIX e XX” (1996).
Era a visão iluminista do progresso irreversível, o grande épico do avanço da Humanidade. Mas o terror e os excessos da Revolução Francesa, das guerras napoleônicas, da Revolução Russa, do nacional-socialismo alemão e das guerras mundiais dissolveram as crenças ingênuas de que seriam inevitáveis e iminentes melhores formas de convivência entre seres humanos.
“O conceito francês de civilização reteve o sentido de valores morais e humanos como atributos imutáveis, válidos para uma história universal da Humanidade. Já o conceito germânico de cultura foi usado no sentido de cultivar a educação e os hábitos dos indivíduos de modo a realizarem plenamente todo o seu potencial. E em fins do século XIX e começo do século XX o termo cultura foi cada vez mais usado na acepção de cultura nacional, desaparecendo as conotações morais ou humanistas absolutas”, advertia Elias a propósito de um nacionalismo em ascensão que deslocava os princípios liberais e humanistas em declínio, uma preparação para as hecatombes subsequentes.
O fenômeno da globalização contemporânea deflagrou análises que vão da mesma crença ingênua no fim da História pela convergência universal ao paradigma ocidental ao outro extremo do insuperável choque das civilizações. A grande pergunta tem sido em que medida as crenças religiosas fundamentalistas, as ideologias obsoletas e as culturas politicamente primitivas, com um longo histórico de centralização de poder e de abusos sobre os indivíduos, resistiriam às exigências de uma nova ordem econômica global. Como se adaptar ao paradigma das modernas democracias liberais, à síntese ocidental de democracias e mercados?
Mas há outra pergunta ainda mais fundamental de nosso ponto de vista: em que medida resistiremos nós, ocidentais, às exigências dessa nova ordem em formação? Pois o outro lado, com 3,5 bilhões de eurasianos, pratica a supressão dos direitos políticos, ignora os custos de manutenção das redes de solidariedade existentes em sociedades abertas e desconsidera as questões ambientais. Os indivíduos não passam de um detalhe diante das exigências de coordenação da coletividade. O que exige de nossa parte eficientes reformas para fortalecer a competitividade ocidental diante do choque econômico e da guerra mundial por empregos já deflagrada. A estrutura final da nova ordem é ainda desconhecida.
(“O Globo” – 01/02/2010)
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