A derrubada do avião da Malaysian Airlines está ampliando a já grave crise da Ucrânia. A meu ver, este ato criminoso foi obra de alguns tresloucados rebeldes pró-russos, atuando por conta própria, e que já haviam derrubado, um dia antes, dois aviões militares ucranianos. Mas a conta está batendo na mesa de Vladimir Putin e ela é salgada.
Façamos um breve retrospecto. O primeiro lance foi feito por Putin ao invadir e anexar a Crimeia. Havia aí um caso bastante compreensível de autodeterminação de uma população russófila e uma base naval importantíssima para a Rússia em Sebastopol. O fato estava consumado e ninguém no Ocidente se dispunha pronto a morrer pela Crimeia. O assunto poderia encerrar-se aí. Após este êxito, que lhe deu grande popularidade na Rússia, Putin deveria ter parado. Sua vitória estratégica tinha sido total. Cometeu, porém, o equívoco de dar, como um jogador insaciável, outro lance muito mais ousado e perigoso ao enviar seus agentes para fomentar a desestabilização da Ucrânia, em particular na área oriental do país em que há um forte contingente de russófonos. Assim, os rebeldes, como se chamam agora estas pessoas, receberam assessoria militar e armas — em especial os mísseis que derrubam aviões — e passaram à ação. Estes são, em uma pílula, os fatos principais.
Atravessar uma linha vermelha custa geralmente caro. Putin cometeu esse erro de cálculo. A Rússia tem hoje uma economia enfraquecida. Segundo a tirada recente de um amigo, é um país que só tem petróleo e gás e assim se assemelha à Líbia, mas em um mar de neve em lugar de um deserto de areia. Isso quer dizer que para a Rússia os investimentos estrangeiros são o principal fator de dinamismo econômico. Por exemplo, a Alemanha lá investiu 20 bilhões de dólares e seu setor empresarial prega a Angela Merkel moderação na postura europeia sobre a crise ucraniana. De fato, a poderosa chanceler alemã vinha atuando neste sentido. Mas, depois do ataque ao voo MH17 da Malaysian, o tom está subindo inevitavelmente. Ainda que, muito provavelmente, o atentado não tenha seguido uma ordem de Putin, é insustentável a tese de que não existe um rastro russo nisso. O crime semeia desconfiança e medo em toda a vital aviação civil internacional e provoca uma revolta geral pela morte de quase 300 inocentes. Não há mais condições para qualquer líder ocidental se abster diante de um fato tão grave.
Paixões alimentadas por nacionalismo, religião e história são o principal combustível das guerras. Creio que a União Europeia tem uma boa parcela de culpa por estimular o distanciamento ucraniano da Rússia. Em fins de 2013, estava quase concluído um acordo de associação da Ucrânia que mudaria todos os vetores da política e da economia ucraniana, afastando o país da esfera de influência russa e voltando-a para a Europa Ocidental. Isso para Putin era intolerável porque a Rússia considera a Ucrânia como parte sua, pois a sua própria religião ortodoxa foi criada em Kiev e, com exceção de um curto período de algumas décadas, a Ucrânia nunca na historia foi independente, e sim parte do espaço russo.
O conflito ucraniano não tem data para acabar, o gênio do mal saiu da garrafa.
Fonte: O Globo, 23/07/2014.
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