Uma leitura ligeira do noticiário sugere que a USP, a Unesp e a Unicamp, depois de costurar acordos com os sindicatos grevistas, estão em via de superar a crise. Não é bem assim. O que talvez seja superado é apenas um surto, uma catatonia institucional aguda, que passou. Quanto à crise propriamente dita, esta não se resume a uns (poucos) funcionários que cruzaram os braços e no caso específico da USP não se resume sequer ao desastre financeiro de uma folha de pagamentos que supera o total do orçamento.
Relembremos os números. Em 2013 os salários consumiram 105,6% do orçamento da USP, mas não para pagar aos professores – a remuneração de funcionários representou 60% da folha, numa grave inversão de prioridades. Na USP, hoje, os fins (dar aulas, fazer pesquisa, gerar conhecimento, atividades a cargo de docentes) foram fagocitados pelos meios (administrar a burocracia, manter em funcionamento laboratórios e bibliotecas, etc.).
Se as cifras são tétricas, a crise é pior. Ela se expressa na morosidade das instâncias decisórias, na baixa representatividade dos órgãos colegiados (e dos sindicatos também), na máquina agigantada e insondável que impede a transparência, a impessoalidade plena e a agilidade da gestão. Passada a catatonia institucional aguda, a crise vai se agravar, ao menos para a USP, que será chamada a apresentar à sociedade justificativas para a sua autonomia administrativa.
Autarquia bilionária (orçamento de R$ 5,3 bilhões em 2013), naufragada num déficit igualmente bilionário, a maior e melhor universidade do país, sitiada pelos palanques sindicais – que são legítimos, deixemos claro -, decidiu aumentar, entre 2010 e 2013, tanto o número de empregados como os salários (acima da inflação). Concedeu reajustes e benefícios que elevaram em mais de 100% os proventos de mais da metade dos funcionários (não dos professores). Contratou mais 2.414 trabalhadores (ante apenas 396 novos docentes). Hoje são ao todo 17.554 servidores. Quais os critérios dos aumentos? A sociedade quer saber.
Que não há universidade de excelência sem autonomia, disso todos sabemos. Também sabemos que a autonomia universitária inclui a livre administração dos recursos. Mas a autonomia financeira e administrativa não é um fim em si, é um meio para realizar o fim maior: a autonomia institucional e política, precondição para o ensino e a pesquisa de qualidade. Sendo autônoma, a universidade não tem de se dobrar a governos em troca de verba ou de nomeações. Não sendo manobrável por politicagens, pode buscar a excelência. Assim, a autonomia atende aos mais altos interesses do país, que precisa de boas universidades para formar profissionais de alto nível e para gerar conhecimento que fomente o pensamento crítico, revigore a democracia e acelere o desenvolvimento social e econômico. Uma universidade sufocada por uma folha salarial estapafúrdia (que ela mesma produziu) não é autônoma, mas refém das pressões corporativistas internas.
Quando se deixa intimidar pelos palanques e entrega a eles o dinheiro que não tem, a reitoria trai seu compromisso com o país, põe a autonomia a serviço de corporativismos e se desmoraliza. Se não é capaz de gerir o dinheiro que recebe da sociedade, como será capaz de liderar a produção de conhecimento de um país? Claro que é imperioso dialogar com grevistas, mas também é preciso administrar com responsabilidade e total transparência os recursos disponíveis. Tristemente, porém, as reitorias costumam errar nas duas pontas: não dialogam nada e cedem tudo.
No domingo passado, dois professores da USP, Virgílio Afonso da Silva e Fernando Limonji, publicaram um artigo (“Trancada pelo trancaço”) no caderno “Aliás”, deste jornal (“O Estado de S. Paulo”), com um diagnóstico preciso: “Recursos são finitos (…), mas, para os sindicatos e, não podemos esquecer, também para a opinião difusa que sustenta suas estratégias de pedir sempre mais aumentos, a finitude dos recursos seria uma mentira ou, no máximo, uma desculpa de gestores incompetentes”. Eles têm razão. Boa parte da comunidade universitária padece do fetiche infantil da mesada.
Mais crise? Vamos lá. O próprio conceito de universidade vive uma crise no mundo todo. Os centros mais influentes da comunidade acadêmica internacional se reinventam. Enquanto isso, o Brasil esquece os parâmetros básicos. A ideia do trinômio “ensino, pesquisa e extensão”, que vem em boa parte de Humboldt, do começo do século 19, acabou se perdendo em panfletarismos de cátedra que negligenciam não só o conceito da autonomia, como o caráter independente e apartidário que a ciência e o conhecimento acadêmico precisam ter na democracia.
Essa camada profunda da crise, a crise do conceito, aflora hoje, de modo mais visível, nas universidades federais, cujos reitores sobem coletivamente no palanque eleitoral do governo (bem mais comprometedor que os outros, meramente sindicais). Dão a impressão de desconhecer o próprio papel. A cada nova eleição, quase todos os reitores das federais hipotecam apoio público à candidatura oficial. Há pouco menos de um mês, no dia 11 de setembro, 66 deles lotaram o Palácio da Alvorada para exaltar a reeleição de Dilma Rousseff (a informação está publicada no site do Partido dos Trabalhadores).
Ainda que tenham sinceras razões para preferir a candidata do PT, esses reitores, inadvertidamente, causam a impressão de assimetrias partidárias no tratamento do corpo docente e podem, sem querer, inibir dissidências e encorajar o monolitismo de opinião. Isso não é autonomia. Pode ser partidarismo, ainda que involuntário.
Agora, calma. Temos uma boa notícia. Uma só. Os reitores das três universidades públicas paulistas ainda não foram em comitiva ao Palácio dos Bandeirantes para engrossar a campanha de reeleição de Geraldo Alckmin.
Já pensou onde estaríamos se eles fizessem isso?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 2/10/2014
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