*Heron Santos
Todos já sentimos aquele calafrio antes de falar, comumente acompanhada pela breve pausa silenciosa em que calculamos o risco de pronunciarmos uma palavra e o perigo de sua má interpretação. Tal tirânico temor, antes restrito aos regimes autoritários, hoje se pulverizou nas conversas cotidianas; antes moralidade teocrata, agora politeísmo barato, sempre nos assombrando. Denominaremos esse fenômeno de “amarra verbal” — processo sociolinguístico que reduz a complexidade dos conceitos e os fixa a respostas afetivas pré-programadas, produzindo consequências normativas e práticas sobre quem fala e quem ouve.
A premissa para sua composição é simples: certas palavras deixaram de ser representações de ideias para se tornarem, per se, atos de agressão. Sob essa nova ortodoxia, usar o termo “X” não é mais interpretado como ofensivo; o simples ato de pronunciá-lo já é a violência. Torna-se irrelevante a intenção do falante, ao passo que a autoridade sobre o significado da comunicação é transferida por completo para a sensibilidade do ouvinte.
Este processo não é apenas um acidente social, mas um sofisticado mecanismo de poder, o qual se apoia em uma dimensão natural da linguagem. Berger e Luckmann lembram-nos que as práticas linguísticas, repetidas e objetivadas, tornam-se facticidades — isto é, passam a aparecer como verdades independentes de quem as produz.
Como argumentou Foucault, filósofo aplaudido na hoje cátedra majoritária, o discurso não é só um reflexo das lutas de poder, mas aquilo pelo que se luta. Controlar a linguagem, por essa leitura, é controlar a percepção da realidade. A audácia de questionar a validade dessa conexão não deve ser mais lida como possível motor do debate comunicativo, mas deve ser lida como uma negação da realidade e crueldade arbitrária. O interlocutor do debate, antes um semelhante com ideias diferentes, fantasia-se de herege praticante de uma moral defeituosa.
Os pensadores não pasteurizados não são, e nem poderiam ser, refutados; eles são rotulados com os vocábulos da vez — “insensíveis”, “fóbicos”, “negacionistas” — para serem expulsos do debate racional. A discordância é patologizadaem loucura e insanidade.
Por qual razão nos submetemos a essa fraqueza? A psicologia social, desde os experimentos de Solomon Asch na década de 1950, nos prova que a massa tende a preferir concordar com um erro evidente a enfrentar o desconforto do ridículo pelo isolamento social. Esse é o mesmo motor da chamada “Espiral do Silêncio”, explorada posteriormente no campo das ciências sociais por Noelle Neumann, segundo a qual, no momento em que uma nova convenção linguística é imposta por uma minoria vocal e amplificada pela mídia e pelas redes sociais, as vozes dissidentes simplesmente se calam. Seu silêncio, por sua vez, reforça a percepção de que o consenso é unânime, possivelmente auto-evidente, o que leva a mais pessoas a se calarem. Tornamo-nos nossos próprios censores delegados, patrulhando nosso discurso para evitar a condenação pública.
Das consequências do fenômeno descrito, a mais relevante para a reflexão proposta é a patologização do dissenso. O debate público, cuja razão de ser serve como ágora para o confronto de ideias, é transformado em um espaço terapêutico a ser protegido de qualquer desconforto. Os argumentos passíveis de serem levantados são reclassificados como “agressões verbais” e ideias divergentes como fontes desse vil “trauma”. Como modernos Grandes Inquisidores dostoievskianos, os arquitetos dessa sensibilidade institucional nos prometem segurança emocional em troca da liberdade de pensamento. Oferecem a infantil felicidade da submissão, protegendo-nos da complexidade que constitui o mundo real.
Há uma mutação moral em curso. A crítica contemporânea à liberdade de expressão — que reivindica reconhecer a força performativa do discurso e o dano que certos enunciados acumulam historicamente — deslocou o conceito de dano do tangível para o cívico e para o existencial. Argumenta-se que certos discursos corroem a igualdade e a dignidade de grupos, produzindo consequências reais para sua participação social. Nisso, a tensão com a tradição liberal clássica não é irrelevante: trata-se de decidir se o critério para restringir a palavra será o prejuízo objetivo, a proteção da dignidade cívica ou a experiência subjetiva da ofensa.
A solução? Recupero a noção de parrhesia — a coragem de dizer a verdade — formulada por Foucault: não como licença irrestrita, do mesmo modo infantil, para dizer tudo, mas como disciplina moral que combina franqueza, responsabilidade e disposição ao risco. A virtude vem de menosprezar, com paixão e responsabilidade, os riscos que a fala acarreta. É a disciplina de ancorar a própria existência na realidade das ações e competências, e não na areia movediça das opiniões e afetos socialmente impostos.
Tal ética discursiva tem dois movimentos: primeiro, fortalecer a prática da fala responsável — examinar intenções, contextos e efeitos; segundo, cultivar a robustez social para tolerar incômodos intelectivos sem atribuí-los a monstros morais. Não trata-se de negar o dano que certos discursos podem causar, mas de recusar que o único remédio seja institucionalizar amarras que transformam toda disputa de sentido em trincheiras de justiça sentimental.
A vitória sobre essa asfixia intelectual não advirá de leis ou regulações, as quais apenas criariam novas formas de censurapontuais – superar a amarra verbal apresenta-se como exercício de fortaleza. É tarefa paradoxalmente exigente, uma vez que exige tanto sensibilidade — para reconhecer injustiças reais — quanto sobriedade — para não reduzir a vida pública a um conjunto de proibições afetivas.
Por meio de tal compromisso, assumimos a ciência de que a hipersensibilidade alheia de modo algum pode ser o critério inicial para investigar a realidade. É preciso que entendamos que a verdadeira segurança, da inata pulsão humana pelo conhecer, não reside na ausência de riscos, mas na presença da coragem para enfrentá-los. A liberdade de pensamento confunde-se com a honestidade intelectual; não é um direito que nos é concedido, e; é virtude a ser conquistada, dia após dia, em cada conversa onde escolhemos a verdade em vez dos conformistas que buscam pensar e sentir em nosso lugar.
Heron Santos Nery é graduando em Direito pela Universidade de Brasília, Diretor Jurídico da Federação das Ligas Financeiras de Brasília, além de pesquisador e bolsista do Instituto Escafandristas na área de Direito Tributário.