Educação de qualidade, em qualquer país, está associada à existência de instituições ou pilares básicos relacionados com o que ensinar (currículo), quem ensinar (professores), onde e como ensinar (organização e gestão escolar), bem como sistemas de avaliação e incentivo. Reformas educativas podem começar com qualquer desses pontos, mas sua eficácia dependerá do funcionamento de todos os pilares. A forma de encaminhamento da proposta da Base Nacional Curricular Comum (BNCC) é sinal de que estaríamos preparados para fazer a educação avançar? Foco a análise num único detalhe: a diferença entre a versão final do documento — a chamada versão III — e as anteriores.
Comecemos com um juízo de valor. A versão III da Base é significativamente superior às demais, tanto nos textos introdutórios conceituais quanto na estrutura e no conteúdo dos detalhamentos. Em relação a outros países, chega a ser comparável, no caso da Matemática, é razoável na maioria das outras matérias e deixa a desejar em algumas áreas, especialmente educação infantil e alfabetização. Como e por que isso foi possível?
Pela mudança do processo. O MEC assumiu a condução do assunto e mudou a forma de encaminhamento. Até a chegada do novo governo, o tema esteve a reboque de interesses corporativistas e sua condução orientada por ideias pedagógicas equivocadas e inócuas, mas hegemônicas entre a maioria de educadores do país. O que se chamou de “debate” não passou de uma sequência de eventos em que tudo pode ocorrer, menos o confronto de ideias. Não foram identificados os autores e responsáveis pelas orientações gerais e pela elaboração dos documentos específicos.
Sob essa concepção assembleísta, o que vale é o “consenso” — e não o processo devido, ou a qualidade das propostas. Argumenta-se, por exemplo, que foram considerados os currículos de vários estados, mas em nenhum momento se discutiu a qualidade desses documentos. Num país com graves deficiências educacionais, esse tipo de questionamento seria essencial; mas não no modelo assembleísta.
Cabe registrar que a sistemática de trabalho adotada pelo MEC ainda foi muito diferente da usual em outros países, sobretudo no que diz respeito à transparência, etapas e confronto de ideias. Há duas diferenças marcantes com o movimento das fases anteriores. Primeiro, o ministério assumiu a responsabilidade pelo documento — e, assim, ele deixou de ser uma “conquista” dos movimentos que o sustentaram, e pode ser revisto ou refeito segundo critérios definidos pelo governo. Segundo, a versão final reflete claramente que o MEC tentou definir padrões e critérios consistentes para a elaboração dos documentos das diferentes áreas. A versão final, portanto, não é uma continuidade das anteriores, pois rompe em muitos aspectos com os mesmos, embora o órgão tenha feito várias concessões, inclusive e especialmente de linguagem.
O amadorismo e o bom mocismo com que este e a maioria dos temas educacionais são tratados no Brasil certamente impedirá que grande parte dos atores identifique diferenças tanto no produto quanto nos processos. Todos vão se declarar pais da criança. Mas reconhecer essas diferenças e suas implicações é fundamental, se quisermos criar instituições educacionais sólidas capazes de promover reformas eficazes e duradouras.
Cabe identificar os momentos, atores e formas adequadas de participação. Em determinadas ocasiões ela é essencial; em outras deve envolver especialistas e debate aberto entre eles; em outras, especialmente na implementação, necessitará de círculos mais abrangentes e da adesão de quem vai implementar. Mas é simplesmente ridículo um país se gabar de ter recebido mais de 10 milhões de contribuições para a elaboração da Base. E isso é preocupante, porque os mecanismos de audiências e consultas pública continuam a ocupar o lugar de debates.
Será difícil convencer aqueles que tratam o atual governo como ilegítimo ou não aceitam os princípios da democracia representativa. Mas há um grupo significativo de atores que se beneficiaria de uma reflexão a respeito do ocorrido. Inclusive e especialmente organizações não governamentais de elevado poder de fogo, que se envolveram nessa empreitada, e os grupos empresariais que as apoiam e pressionaram para que a Base fosse aprovada de maneira açodada.
Uma reflexão paralela pode ajudar: esse não é um episódio isolado. O Plano Nacional da Educação (PNE) também contou com apoio quase unânime dos educadores e instituições da sociedade civil. Ora, muitos sabíamos — e agora todos sabem — que o PNE é financeiramente inviável, está comprometendo a saúde financeira dos municípios e, se viesse a ser implementado, nenhum benefício traria para melhorar a educação.
A questão que se coloca, portanto, é a de como criar e fortalecer instituições. Tudo bem que os sindicatos defendam os direitos de seus associados. Mas Universidades existem para fazer avançar o conhecimento, não para defender ideias cristalizadas. Governos existem para promover a equidade — e não para promover, proteger ou se associar a grupos de interesse.
O Brasil tem pela frente uma difícil caminhada. A fragilidade institucional nunca foi tão acentuada e os desafios se tornam cada vez maiores. Das várias instituições que constituem o setor educativo, temos uma pontinha que começa a despontar. Resta ver se o governo terá condições e competência para assumir o seu papel e se as organizações da sociedade civil saberão encontrar a melhor forma de contribuir para fortalecer a democracia representativa. Esperamos que sim.
Fonte: “Valor econômico”, 4 de maio de 2017.
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