Da colônia ao império o imaginário político e cultural brasileiro foi construído em torno de valores basicamente cristãos jesuíticos e da ordem da caridade, piedade e solidariedade. Do império à República Velha foi em torno dos valores positivistas e nacionalistas, da ordem econômica emancipacionista e expansionista. A tradição crítica do liberalismo clássico, que poderia nos instruir para uma autonomia e protagonismo políticos propriamente ditos, passou de longe, no máximo como puro pastiche do que acontecia no mundo político saxão, como demonstram os episódios sucessivos e fracassados da inconfidência mineira, da elevação de colônia a reino, com o translado da família real e, logo depois, da passagem do poder de D. João VI para o filho D. Pedro I. Mesmo o célebre grito do Ipiranga de “Independência ou morte!”, atribuído a D. Pedro I em 1822, é pastiche do “Give me liberty, or give me death!”, de Patrick Henry na convenção de Virgínia que antecedeu a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em 1776.
Já na República Nova inauguramos o nacionalismo assistencialista sem a devida crítica liberal aos desmandos dos governantes. E podemos dizer que permanecemos nos valores do patriarcado oligárquico providencialista e demagogo até os dias de hoje. Do esforço getulista de implantação de um Estado presidencialista e uma ordem política trabalhista-previdenciária, ao esforço retórico desenvolvimentista que marca o imaginário popular do período JK até os governos da ditadura militar, entrando pela Nova República. E aí paramos. Não temos mais um projeto nacional de construção de nosso imaginário político e cultural. Entramos numa grande pasmaceira de ceticismo e cinismo. De desconstrução do civismo, do nacionalismo desenvolvimentista, para além de jogar no mesmo balaio todas as doutrinas políticas e ideológicas construídas às custas de muito sangue por toda a humanidade nos últimos séculos. Mesmo o projeto de criação de um imaginário social-democrata, com o declínio das utopias socialistas em todo o mundo a partir de 1989, e o aceno de uma terceira via, não nos comoveu para um debate sincero do melhor modelo de organização social e política para o país. Preferimos patinar melancolicamente nos impasses de nosso processo civilizatório, na nossa miséria de representação política e no conformismo alienante diante das forças do destino ou de nossa condição histórica.
Desde a Constituição de 88 estamos com crescimento econômico pífio diante dos anos da Bossanova. Do ponto de vista do desenvolvimento político e da consolidação institucional o desempenho também é medíocre. Sequer o trabalho de limpeza da casa, a remoção básica do entulho autoritário e das práticas da demagogia e maus costumes políticos, tivemos a coragem de levar a cabo.
É urgente articular as ações políticas das associações empresariais, pelo que têm de capacidade de realizar, das organizações e entidades da sociedade civil, pelo que têm de legitimar, da mídia, pelo que são os veículos como sistema de transmissão de valores sociais os mais eficazes de que dispõe nossa cultura, e sobretudo das associações de carreiras típicas de Estado, pela sua urgente afirmação de autonomia e missão institucional diante da sociedade como um todo, para incutir nos cidadãos eleitores e pagadores de impostos a sua irrenunciável responsabilidade política em controlar, fiscalizar e exigir conduta ética dos governantes eleitos no trato da coisa pública. É desta articulação que depende a reforma política, mãe de todas as reformas, e o primeiro passo para liberar as forças do desenvolvimento pleno do Brasil.
Excelente o seu artigo. Tomei a liberdade de enviá-lo para um grupo de universitários que, sob o nome de Bandeira Científica, estão fazendo um belíssimo trabalho de assistência a comunidades carentes.
A razão desse envio foi conscientizá-los de como o trabalho deles se vincula com esse nosso imaginário cultural e social, que você tão bem analisa.
Parabens
Cordialmente
Markut