No final do século XVII, precisamente em 1683, o filósofo John Locke chega à Holanda fugindo da violência religiosa na Inglaterra e decide devotar-se à ideia de que a tolerância é um atributo próprio da igreja cristã. Passando da teoria à prática, a sua famosa “Carta sobre a tolerância” viria a condenar, em definitivo, o recurso da força nas contendas da fé e instaurar um novo momento de diálogo entre as religiões. Foi uma condenação pioneira ao discurso do ódio.
Hoje vemos que a intolerância ganha novas colorações. Converge da religião para a política que, no caso brasileiro, rapidamente parece dividir o país entre partidários da democracia e adversários da democracia, opositores e apoiadores do governo, de partidos, de causas, enfim, a sensação é que em qualquer situação tende a prevalecer os extremos.
Partindo dessas constatações, as manifestações contra jornalistas, com palavras ofensivas como as que vimos recentemente contra alguns profissionais, seguem essa tendência e são gestos, sob qualquer ângulo de avaliação, contrários à liberdade de expressão e de imprensa. Além disso, traduzem uma visão distorcida do jornalismo. Os agressores pensam assim: se a notícia coincide com a sua visão de mundo, aplaudem, caso contrário, se sentem traídos. Têm ódio e se sentem à vontade para expressá-lo.
Agradar ou ser cúmplice não é o papel do jornalismo. O profissional procura mostrar as contradições dos fatos, não escondê-las. E não é por isso que a sua voz deva ser calada. Censurar jornais e jornalistas é uma prática comum nos regimes autoritários. Fazendo um paralelo com a história, assediar moralmente ou silenciar o jornalista com a violência equivale, simbolicamente, a matar o mensageiro. Desde a Antiguidade o mensageiro, mesmo em épocas de guerra, tem imunidade. Modernamente, o jornalista é responsável pelo que escreve e nos regimes democráticos continua a merecer o tratamento de mensageiro.
Essa discussão não é nova. Se há novidade, ela reside na rejeição por parte da sociedade desse tipo de atitude, independente da coloração ideológica da sua origem. O assédio moral é uma forma de violência — o ódio traduzido em insultos — e como tal é condenado.
Em relação ao passado, a reação da sociedade é atualmente mais positiva e quem insiste na violência verbal corre o sério risco de ser considerado ultrapassado, até se transformar num dinossauro comportamental. Isto se não for responsabilizado criminalmente. Porque a violência não é apenas contra a pessoa do jornalista, mas sim contra toda a sociedade que, na essência, é a maior beneficiária dessa mesma liberdade.
A teoria por trás da estratégia da violência verbal é muito clara: o monopólio da verdade. E não é preciso ter bola de cristal para saber aonde leva esse caminho, o ponto de partida e de chegada das ditaduras. Um caminho que o Brasil, por experiência, conhece bem — o Estado Novo e o longo regime militar pós 1964 — e tem rechaçado, sem que nada possa indicar que voltará atrás. Pelo contrário, desde a Constituição de 1988, escolheu o caminho inverso e nele permanece. Estamos construindo um Brasil avesso a toda forma de censura e discriminação e favorável às liberdades públicas.
É preciso avançar ainda mais na ampliação da pluralidade de opiniões, pois, ao defender o pensamento único, estaremos excluindo toda a possibilidade de pensamento contrário e, sobretudo, de busca da verdade. Evidentemente, a verdade é um conceito amplo, dependente do ponto de vista que se tenha sobre a mentira, a manipulação ou a retidão ética. Mas, há um critério de verdade e de difícil contestação. A verdade é o fato e seus diferentes contextos.
A liberdade de expressão e de imprensa se justifica pela dificuldade de saber o que é fato, o que é opinião e, não raro, o que é manipulação. Vivemos numa sociedade de muitas faces e de muitas versões da verdade. E só o livre jogo social é que pode despir ou vestir a realidade dos fatos. Sem liberdade, caminha-se para o autoritarismo e, em consequência, para crescente instabilidade social.
Portanto, não há outro acesso à verdade senão pela liberdade. Pois é a liberdade que assegura a possibilidade de diferentes narrativas sobre um mesmo fato. E isso só pode acontecer se houver diferentes jornalistas escrevendo, diferentes jornais e diferentes mídias circulando. Enfim, liberdade de expressão e de imprensa, porque a liberdade é um valor republicano e uma conquista da sociedade.
Fonte: Dissenso.org, 17/07/2017.
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