Há todo um processo em curso, encampado pela Fundação Palmares, pelo Incra e pelo Ministério Público Federal (particularmente a sua 6ª Câmara), de ressignificação da palavra quilombo, visando a enquadrar todas as suas ações numa interpretação do artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988. Esse processo conta até com o apoio de setores da comunidade de antropólogos. Foi igualmente essa posição que fundamentou o Decreto 4.887, de 2003, estabelecendo os critérios de desapropriação baseados na autoatribuição e na autodefinição. Desde então, tais formulações só se têm reforçado.
A Constituição de 1988 é inequívoca no uso do conceito de quilombo, significando, na época, uma comunidade de escravos fugidios, mormente negros, que constituíram povoados em regiões longínquas com o intuito de oferecer resistência aos que vinham em sua perseguição. Ela é igualmente inequívoca ao assinalar, naquela data, as terras que eram efetivamente ocupadas, de forma continuada, por negros, entendidas como terras públicas ou devolutas. Concebia-se a existência de, no máximo, cem quilombos no País.
Ora, o movimento da dita ressemantização, assumido oficialmente pela Fundação Palmares, pelo Incra e pelo Ministério Público Federal, altera radicalmente os termos da questão, com o intuito de justificar invasões e contenciosos jurídicos. Calcula-se, a partir da nova significação, a “existência” no País de praticamente 4 mil quilombos, podendo esse número ser ainda muito maior. Uma primeira estimativa, provisória, seria de 22 milhões de hectares a serem destinados a essa “nova reforma”, agrária num sentido, mas, em outro, atingindo diretamente centros urbanos.
Um quilombo passa, então, a ser definido segundo uma identidade simbólica baseada na autoatribuição. Basta um determinado grupo autointitular-se quilombola, a partir de uma suposta comunidade de raça, religião e sentimentos, para que se estabeleça uma pretensão territorial. É interessante observar que não se trata mais de terras ou propriedades, mas de “territórios”, supostamente fundados nessa identidade simbólica, cultural. O trabalho do antropólogo se reduziria, por assim dizer, a colher relatos orais que justificariam uma pretensão, de antemão reconhecida como justa.
Ocorre o que é denominado redimensionamento do próprio conceito de quilombo, sua ressemantização, num processo de construção teórica, que não se contenta com o que os constituintes de 1988 consideravam como sendo um quilombo. De um lado, temos o que a Constituição estabelece conforme o que era pensado com esse conceito; de outro, temos os antropólogos conferindo à Constituição um significado que não é dela, significado esse não pensado pelos constituintes. A situação política é assaz curiosa, porque os antropólogos se colocam na posição de verdadeiros constituintes, sem terem sido eleitos com tal finalidade.
A inversão é total.
Foi introduzida, graças a um grupo de antropólogos, uma distinção de cunho ideológico e político entre o quilombo propriamente dito, renomeado “quilombo histórico”, e o quilombo então dito “conceitual”, que seria o “verdadeiro” quilombo. Trata-se de uma oposição entre o que seria o “reconhecimento” de um quilombo pelo Estado, num ato oficial, administrativo, político e jurídico de consagração de uma realidade, e o que seria um ato próprio de criação, produto de uma ressemantização, uma nova atribuição de significado à palavra quilombo, um quilombo imaginário.
Observe-se que, no primeiro caso, estaríamos diante do que é denominado “quilombo histórico”, reconhecimento de uma realidade dada, de algo existente, e, no segundo, de uma produção propriamente simbólica, à qual se seguiria uma atribuição de existência. Num caso, há o reconhecimento de algo existente, no segundo, a produção de uma nova existência, não anteriormente dada. Ainda nesta última alternativa, a produção de uma nova existência, a criação de quilombos, obedece a um projeto de ONGs e movimentos sociais, que se conjugam naquilo que vem a ser um empreendimento político, também denominado criação de “novos sujeitos políticos”.
De fato, o quilombo histórico não serve à causa quilombola. Como a lei, no entanto, deve ser observada, e como eles se reivindicam do artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Constituição, torna-se necessário empreender um processo de metaforização, no qual, a rigor, tudo passa a caber, na medida em que são os próprios antropólogos que conferem a símbolos culturais e religiosos uma realidade medida em acres e hectares. Para que a sua finalidade política seja preenchida, uma operação preliminar é condição imprescindível, a da “conversão simbólica”, que deixa para trás, precisamente, o significado da palavra quilombo e, com ela, a própria Constituição.
O quilombo histórico é atestado pela própria sociedade brasileira, com suas leis e instituições administrativas, que tomam essa realidade em seu significado aceito e reconhecido. O dicionário é o veículo dessa aceitação e desse reconhecimento, tomado por válido durante décadas e séculos. Trata-se da condição mesma mediante a qual pensamos e nos entendemos, atribuindo o mesmo significado às mesmas palavras. Se assim não fosse, viveríamos entre loucos e insensatos, cada um atribuindo um significado diferente às mesmas palavras e instrumentalizando, por meio dessa atribuição de significados, a essa ressemantização, uma luta propriamente política.
Confúcio dizia: “Quando palavras perdem o seu sentido, o povo vai perder a sua liberdade.” Muitas vezes, as palavras mudam para que novos significados sejam introduzidos, embora tais mudanças, frequentemente, sejam ditas meras mudanças nas palavras, sem alteração em seus significados. A linguagem jurídica, e mesmo moral, torna-se, então, um instrumento da luta política e ideológica.
(“O Estado de SP” – 15/02/2010)
Sobre a citação de Confúcio, me lembra a impressão causada pelo livro 1984. O chamado duplipensar, e como isso tem sido aplicado no Brasil.