À pergunta “quem pode governar?”, poder-se-ia responder “quem pode governar”. Dir-se-ia um truísmo, mas não o é, pois o eleito, mesmo que por maioria absoluta, pode não ter condição de governar. A senhora presidente foi eleita com mais de 50% dos votos, mas o seu partido não elegeu cem deputados, e seu aliado outro tanto, cerca de cem, ao todo menos de 200, quando a Câmara se compõe de 513 deputados; mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer quanto ao Senado. Ora, a maioria parlamentar pode empecer mais ou menos a ação do Poder Executivo, e havendo hostilidade não há senão que esperar o fim dos mandatos executivo e legislativos. É assim no sistema presidencial, com mandatos fixos, duração de quatro anos, chova ou faça sol, sofra o país uma invasão armada ou suceda um surto de peste; não podem ser dilatados nem reduzidos, para novo pronunciamento eleitoral a realizar-se em prazo breve, como no sistema parlamentar. E ainda é mais estranhável o conflito quando ambos os poderes são de origem popular, e selecionados na mesma ocasião.
A experiência recente tem demonstrado que, em tal situação, o presidente eleito busca o apoio de um ou mais partidos, geralmente mediante a participação no governo dos colaboradores novos. Parece que a senhora presidente não teve dificuldade em compor numerosa maioria, mais de 400 da Câmara, salvo engano, e também no Senado.
Além do mais, a busca da maioria, ao que sei, não se deu com base em determinado programa de governo. O expediente foi mais chão, a entrega pura e simples de pedaços da administração aos novos sócios independentemente de sua orientação política e de seu possível ou declarado antagonismo com o novo parceiro, até o dia anterior. O resultado não foi exitoso. Alguns ministros tiveram de ser desnomeados em condições pouco lisonjeiras. E, o que é pior, a própria senhora presidente assumiu a responsabilidade de “blindar” (emprego o vocábulo oficializado) alguns de seus preferidos, cujos antecedentes permitiam reservas. Enquanto isso, a titular do Poder Executivo praticamente suspendeu as relações com aqueles que apoiavam seu governo, ou que formavam a sua base de apoio, como agora se diz. A justificar essa diretriz, à meia-voz, falava-se na voracidade de deputados em suas pretensões e se mencionava a resistência dos mesmos a iniciativa do Executivo. É possível que haja alguma verdade nessas alegações, mas se poderia retrucar que o Executivo não se tem mostrado modelar nesse e em outros sentidos. Mas o que mais impressiona é que, à sombra de feudo concedido, se pretendeu desfigurar o Legislativo, que a Constituição proclama independente. Outrossim, o Executivo se reserva a faculdade de interferir na vida do Congresso em suas atribuições específicas. Como se sabe, em certos períodos o Poder Legislativo foi submisso aos desejos do Executivo, mas em nenhum como no longo consulado autoritário; pretender isso agora, depois da retomada da normalidade institucional, é intolerável. De modo que, em verdade, a crise existente não tinha o simplismo a ela atribuído e era e ainda é bem mais ampla e complexa.
Eis senão que, na véspera de sua viagem à Índia, a honrada senhora presidente declarou inexistir qualquer crise, “criação da imprensa”, e que o fato de a Câmara haver recusado a indicação de uma pessoa para determinada função não era motivo para haver crises, pois era natural que o corpo legislativo aprovasse ou desaprovasse uma proposta do governo. Enfim, uma colher de bom senso, só lamentável que ela não houvesse dito essa verdade alguns dias antes. Mas sempre é tempo para corrigir um deslize ou mesmo um erro. Assim procedendo, a autoridade não se diminui, antes se engrandece. A crise que nunca existiu ainda não se exauriu, e a senhora presidente mais do que ninguém tem os predicados para dar-lhe o adequado tratamento. Demorar a solução importaria em seu agravamento, o que seria péssimo.
Fonte: Zero Hora, 02/04/2012
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