Falar em “década perdida” para um latino-americano acima de certa idade desperta amargas memórias. É o símbolo da década de 1980, em que problemas de dívidas acumuladas levaram à recessão e culminaram em hiperinflação. No processo, a renda concentrou-se e a pobreza aumentou. A perda de bem-estar atingiu o ápice. Imagino que falar em “ushinawareta juunen” tenha a mesma reação no japonês, que há décadas vê a sua economia estagnada.
Pois estamos diante de mais “décadas perdidas”, agora nos EUA e na Europa. A “década perdida” será “lost decade”, “decennio perduto”, “décennie perdue”, entre outras línguas. A crise atual já leva quase quatro anos: a crise de 2011 é a mesma que começou em 2007-2008. Os problemas fiscais hoje têm raízes nos excessos anteriores à crise global, nas dívidas privadas incorporadas para evitar a quebra de vários bancos e empresas e nos déficits públicos necessários para evitar a recessão. O problema nas economias maduras não é à parte no Brasil. O debate atual de política econômica no País depende da severidade e da longevidade da crise global.
O processo é, de fato, longo. Envolve reduzir a dívida no decorrer de muitos anos. A ruptura com o passado – de excesso e de bolhas – levou os consumidores e as empresas a reduzirem suas dívidas, para se adaptarem a uma nova e mais austera percepção de riqueza. Esse processo de reduzir as dívidas, denominado de “desalavancagem”, tem a triste característica de ser recessivo. Para pagar dívidas o consumidor precisa gastar menos e as firmas, investir menos. As vendas caem, a produção diminui e o desemprego aumenta.
O processo é longo porque não é fácil apertar o cinto. A decisão de reduzir é sempre mais penosa do que a de aumentar a dívida. Distribuir gastos e benesses pode até envolver disputas, mas é mais fácil do que administrar cortes. Em geral, não há consenso na sociedade sobre onde cortar. As reações são duras, grupos organizam-se para evitar sofrer perdas. As disputas no Congresso dificultam a passagem de medidas amargas. Se a situação é grave, crises na economia levam a medidas de ajuste, que perdem o sentido de urgência assim que a situação deixa de piorar. E o tempo passa.
Nos EUA, o debate sobre a elevação do teto da dívida evidenciou a falta de consenso sobre como administrar a austeridade (futura) para estabilizar a dívida. Democratas preferem aumento de impostos e republicanos, corte de gastos. Vai ser muito difícil aprovar um ajuste fiscal a toque de caixa. Serão anos de idas e vindas, e tempo para a economia digerir o excesso de endividamento.
Na Europa, o problema é equivalente, mas também pior. Explico: é equivalente pela natureza fiscal que envolve reduzir a dívida, promover um ajuste fiscal e lidar com o efeito recessivo do processo. Mas é também pior porque seu estágio é mais agudo. Enquanto nos EUA o problema hoje é encontrar meios para estabilizar a dívida no futuro, em algumas economias europeias ele é imediato: não se encontram mais compradores para rolar a dívida. E o calote se torna iminente, a menos que o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou outros governos da Europa venham em resgate.
É essa possibilidade de calote na Europa que torna o cenário de uma década de crescimento perdido ser considerado apenas… “moderado”. A alternativa megapessimista é a ocorrência de uma “reestruturação” (não pagamento) desordenada da dívida de um país, que leve ao pânico e à corrida nos mercados, com a desconfiança de que ocorra o mesmo com outras dívidas e/ou a quebra de algum banco como consequência das perdas. O exemplo de uma crise dessas seria a do Lehman Brothers (a memória vai sempre à crise imediatamente anterior), no final de 2008, que causou a maior recessão global desde 1929.
Para o Brasil faz diferença se o futuro nos reserva um cenário de uma década perdida nas economias maduras ou de uma crise mais aguda à la Lehman Brothers. Um processo longo, não agudo, reserva a possibilidade de que tendências de médio prazo predominem na economia. Um cenário agudo costuma ser dominado pela fuga dos ativos de risco e busca de portos seguros, em geral os conhecidos de antes.
Um cenário de década(s) perdida (s), com crescimento muito baixo nas economias maduras dos EUA e da Europa, reforça a busca no mundo pelo consumidor de última instância, aquele que venha a substituir o americano e o europeu. Esse consumidor está presente nas economias emergentes, principalmente nas populosas, que se estão engajando na economia global a passos acelerados. É o caso da China (que precisará redirecionar sua economia para dentro) e da Índia, mas também do Brasil.
A produção no mundo terá um deslocamento em direção ao consumo dessas populações nas economias emergentes. Não o contrário. O tempo de os emergentes exportarem (para os países centrais) para crescer provavelmente ficou para trás. O investimento mundial provavelmente também será direcionado para os emergentes, em busca de retornos mais altos do que nos países de origem.
Num mundo onde o capital deve fluir para as economias emergentes (rompendo o paradoxo anterior de fluírem dos pobres para os ricos) para realocar o excesso de poupança (falta de consumo), as incipientes tendências atuais no Brasil podem durar alguns anos. Os fluxos de capital financiariam as necessidades de investimento em alta e o crescimento saudável adiante. Mas os fluxos continuariam a exercer pressão sobre o câmbio (mantendo-o apreciado, mas não além dos valores atuais) e o Brasil continuaria a conviver com déficits em conta corrente por alguns anos.
Enfim, estamos no mundo em mutação, onde o melhor cenário são movimentos lentos e difíceis para as economias avançadas. Continuo pensando no que mais acontece nesses processos longos de desalavancagem. Não sei ao certo, mas sei que duram pelo menos uma década perdida.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 06/09/2011
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