Por José Carlos Lopes da Costa
Na ópera “O elixir de amor” o Dr. Dulcamara anuncia que seu mágico produto cura todos os males do corpo e do espírito e… mata ratos também. É mais ou menos o que hoje vejo quando se procura impingir, por tudo e a todos, a infalibilidade e a aplicabilidade universal da pílula democrática. Aceito a Democracia como o remédio mais adequado e com menos efeitos colaterais para a gestão do Estado no mundo de hoje. Não a julgo, entretanto, panacéia infalível para todas as sociedades e creio que valeria a pena ler a bula para concluir que a eficácia do medicamento depende da adoção de outras medidas que não a sua simples ingestão. Para mim o princípio da liberdade no exercício da cidadania, consubstanciado no exercício do voto, pressupõe o bom uso da capacidade individual de escolha. E esta só advém quando amparada pelo bom funcionamento e o exemplo de sólidas instituições sociais. Não precisa que sejam todas. Basta que algumas sejam respeitadas e espelhem de maneira correta onde se situa o interesse público. Quer seja o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, a Religião, a Moral ou os Costumes, pouco importa. Qualquer força coercitiva eficaz que evite e puna os desvios de conduta é sempre imprescindível. Hoje, no século 21, as três últimas forças citadas (Religião, Moral e Costumes) perderam grande parte de seu poder na contenção dos atos anti-sociais e raros são aqueles que se recusam a cometê-los porque é pecado, antiético ou censurável pela consciência ou a opinião pública. É evidente, pois, que cabe às instituições formadoras do Estado, como hoje o definimos, atuar de forma a garantir a integridade dos cidadãos, o respeito ao bem público, a liberdade de pensamento e expressão e tudo mais que lhes é exigido pela ordem democrática. Mas quando o Executivo é, às escâncaras, o reduto de quadrilhas especializadas no assalto aos cofres públicos, quando o Legislativo transforma básicas necessidades, como a saúde, em moeda de troca para o enriquecimento ilícito, quando a ineficiência e a lentidão da Justiça são armas na defesa da impunidade, pode-se falar em Democracia? Talvez se possa, caso acreditemos que Democracia é liberdade sem responsabilidade… Se nada é eficazmente proibido, tudo é permitido, inclusive o ataque à própria sobrevivência democrática.
Creio que os homens são iguais em seus vícios e apetites independentes do lugar em que estejam, ao norte ou ao sul do equador. Porém ao norte o infrator teme a conseqüência dos seus atos ilícitos, enquanto aqui, ao sul, em não sendo um dos muitos párias sociais, a impunidade das ações criminosas lhe é praticamente assegurada pela frouxidão das leis e pelo tempo que decorre entre o crime e o castigo. Os que julgam conhecer as nossas imperfeições democráticas acreditam que a verdadeira democracia resulta de lento e constante aperfeiçoamento das instituições, o que hoje é deslavada mentira contestada pelos fatos. O fator tempo, anteriormente medido por anos e até séculos, reduziu-se a minutos pelo conhecimento e a informação globalizada. Antigamente era fácil convencer o homem dos grotões miseráveis que a vida era isso mesmo, uns com muito outros sem nada, e confiar na sua passividade bovina. Agora, quando lhe entra pelo casebre um mundo de aspirações e de desejos, como lhe pedir resignação e paciência? Como evitar que ele, nas suas limitações de conhecimento e cultura, se torne força devastadora no processo democrático elegendo não o mais capaz, mas o que mais promete, aquele que afirma realizar o milagre da transmutação do seu voto em sonhos nunca sonhados? Em outros tempos os candidatos eram eleitos pela bovinocultura, agora pelo ilusionismo… A convicção de que o nosso Congresso regride a cada eleição nos aspectos éticos, políticos e qualidade cultural parece-me verdade incontestável. Ou alguém discorda que hoje a representatividade popular é pior do que ontem e amanhã, fortalecida pela impunidade, será pior do que hoje? Não se trata de profecia, mas de simples constatação ante a contínua e crescente safra de mensaleiros, sanguessugas e aloprados. Eça de Queiroz brincando nos versos dos “pilritos” dizia que “cada um dá o que tem conforme a sua pessoa”. E o que hoje nos é dado é tão desesperador que não nos permite confiar no futuro. Imaginar o contrário é acreditar que um dia a raposa se apiede do galinheiro e que a Democracia, como na fábula, seja capaz de sair do atoleiro puxando os próprios cabelos…
Morreu a esperança? Não. Como diria um ex-ministro, ela é imorrível. Por mais que a neguemos, ela teima em subsistir no desafio a qualquer raciocínio lógico, e muitos são os caminhos propostos para eliminar a estrumeira da vida nacional. O meu é simples. Trata-se apenas de acabar com a impunidade.
Difícil? Sem dúvida. Impossível, não. Basta reconhecer ser este o enfoque correto para a profilaxia do nosso lodaçal, que a solução dos descaminhos éticos, políticos e sociais que tanto nos amarguram passa obrigatoriamente pela reforma do Judiciário, pela eficácia no cumprimento rigoroso da Lei, a “tolerância zero” de que tanto se fala e pouco se aplica. Há que se concentrar vontades e esforços, e quaisquer ações que não se coadunem com esse objetivo são simples tiros de festim, com muito barulho, fumaça e nenhuma eficiência… Em havendo vontade de fazer, o bom senso e a imaginação criadora saberão remover ou contornar os óbices que surgirem. A última manifestação do Supremo reavivou a esperança. Resta esperar que ela não se dissipe ao longo dos muitos anos que, como sempre, separam crime e castigo…
Mas, esqueçamos por instantes os nossos problemas internos. Lancemos o olhar à América Latina e compreendamos a nova ameaça que o “presidente perpétuo democraticamente eleito” representa à nossa democracia. É imprescindível impedir o caos que se aproxima e precisamos, já e agora, de uma cruzada para estabelecer neste país a predominância da Lei e do verdadeiro Estado de Direito.
Uma única voz, a de um escritor e jornalista, Emile Zola, levantou a França com o seu “J’Accuse” na defesa da verdade e da Justiça. Será que no Brasil ainda temos vozes semelhantes ou todas já se omitiram, se desiludiram ou se acanalharam?
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