A imprensa e analistas estrangeiros alertaram para os riscos que a eleição de Jair Bolsonaro traria para a nossa democracia. Muitos brasileiros juntaram-se a esse clamor. A meu ver, trata-se de exagero.
A trajetória de Bolsonaro pode ter justificado esse receio. Ele exaltou o regime militar, elogiou conhecido torturador, disse que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deveria ter sido fuzilado, prometeu metralhar seus opositores e atacou a Folha e outros veículos da imprensa. Duvidou da segurança das urnas eletrônicas e anunciou, à la Donald Trump, que não aceitaria outro resultado que o da sua vitória.
Em discurso transmitido por celular a manifestantes de rua em 21 de outubro, disse que “esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”. “Bandido do MST, bandido do MTST, as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo”. “Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba”, que “vai apodrecer na cadeia”: “O Haddad vai chegar aí também. Mas não será para visitá-lo, não. Será para ficar alguns anos ao seu lado”.
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Essas declarações revelam ausência da cultura de convivência e da tolerância que se espera de quem almeja liderar o país. Por essas e outras, Bolsonaro preencheria os pré-requisitos para se tornar um líder autoritário, na descrição feita por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no livro “Como as Democracias Morrem”.
Para eles, há eventos não antecipáveis de líderes eleitos sob as regras do jogo que minam por dentro a democracia.
Entre tais eventos, eles identificam ataques aos críticos–considerados inimigos e não adversários– em termos duros e provocativos; campanhas que polarizam a sociedade, criando o clima de hostilidade e mútua desconfiança; intolerância ao trabalho da imprensa, que acusam de divulgar inverdades.
Invocam-se exemplos da Venezuela, Turquia, Polônia, Hungria e Filipinas, sem considerar que nesses países o autoritarismo nasceu de líderes fortes e populares. Não é o caso de Bolsonaro, que está longe de se tornar um novo Hugo Chávez. Nenhum deles conta com as robustas instituições de controle do Brasil, não apenas as formais –Congresso, Judiciário e Ministério Público–, mas também a imprensa, que no dizer da revista The Economist é uma instituição “livre, independente, competitiva e agressiva”.
Se nossas instituições se sujeitassem à vontade de líderes políticos, o mais popular deles, Lula, não teria acatado a sentença que o condenou ao cárcere de Curitiba. Nem o Congresso teria concluído o processo de impeachment de sua indicada à Presidência da República.
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Um aspecto relevante, que nos distingue desses países, é a capacidade de mobilização da sociedade para manifestar nas ruas o seu desagrado contra maus líderes, como ocorreu nos grandes protestos de 2013.
Além disso, recente pesquisa do Datafolha mostrou que 69% creem que a democracia seja o melhor regime, percentual que se eleva para 74% entre os mais jovens e 84% nos estratos com curso superior.
O Brasil dispõe de freios e contrapesos que funcionam como defesa da democracia e, assim, de ataques de grupos ou líderes com inclinação autoritária, caso se aventurem a ameaçar o Estado democrático de Direito.
Bolsonaro tem o desafio de conseguir aprovar as reformas que preservem a solvência do Tesouro, restaurem o potencial de crescimento da economia e garantam o cumprimento de suas principais promessas de campanha, particularmente a geração de milhões de empregos.
Antes mesmo de ser uma ameaça à democracia, ele pode constituir uma frustração, caso fracasse nessas reformas.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 04/11/2018