Num mar de dúvidas e indefinições, as perguntas se impõem: a tutela da vida se sobrepõe à continuidade da ordem econômica, cuja razão de ser consiste, justamente, na geração de riquezas que, em sua dimensão fiscal, acabam por garantir a efetiva proteção da saúde dos cidadãos? Ou, no atual estágio civilizatório, a vida humana e a atividade produtiva responsável vivem em simbiose necessária, tornando cogente uma imbricação normativa harmônica e eficaz? Se sim, como, então, garantir a dignidade da pessoa humana sem os recursos materiais mínimos, produzidos pelas forças econômicas livres e ativas? Aliás, há dignidade na pobreza, no desemprego, na fome ou na miséria?
No hiato das respostas categóricas, a Constituição Federal (art. 170) determina que “a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Como se vê, o texto constitucional bem pondera os valores normativos necessários a uma ordem jurídica justa, equilibrada e consciente. Afinal, somente com a proteção da vida teremos “valorização do trabalho humano”, pois, quando a saúde é golpeada, não há “existência digna”, tornando a “livre iniciativa” incapaz de gerar os “ditames da justiça social”.
Sobre o ponto, o egrégio STF já pontificou que “a Constituição autoriza a imposição de limites aos direitos fundamentais quando necessários à conformação com outros direitos fundamentais igualmente protegidos. O direito fundamental à liberdade de iniciativa (arts. 1º, IV, e 170, caput, da CF) há de ser compatibilizado com a proteção da saúde e a preservação do meio ambiente” (ADI 4066/DF, Pleno STF, j. 24.08.2017).
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Portanto, é possível afirmar que as políticas emergenciais de afastamento social, diante da grave ameaça do Covid-19, são absolutamente cabíveis e constitucionais. Todavia, por serem extraordinárias, tais imposições governamentais devem ser obrigatoriamente provisórias, impondo seu imediato relaxamento tão logo restabelecidas as condições da normalidade. Além de temporárias, importante pontuar que a clausura social não vive por si só, devendo ser acompanhada de inadiáveis medidas paralelas de proteção aos mais vulneráveis.
Ora, nos chamados “hard cases”, não há resposta certa prima facie; são as circunstâncias dinâmicas da realidade que informam e determinam a justa equação de constitucionalidade. Por assim ser, nas horas decisivas da História, cabe ao talento superior apresentar soluções político-constitucionais milimétricas à crueza dos fatos, fazendo efetiva diferença positiva na vida das pessoas, sem destruição econômica irracional.
No cair do sol, a economia só é boa quando bem protege a saúde. Fora daí, será a vida da Constituição que estará a sofrer.
Fonte: “Opinião e Crítica”, 14/04/2020