José Serra implodiu sua campanha presidencial nos primeiros dias do horário gratuito, no momento em que colou um retrato de Lula à sua imagem, sugerindo uma falsa associação política. O truque circense de quinta categoria talvez enganasse uns poucos desavisados se Lula estivesse morto. Como está vivo, e fala, ninguém caiu no conto urdido por insuperáveis gênios do marketing eleitoral. Mas o gesto teve um impacto avassalador, palpável o suficiente para ser registrado tanto nas pesquisas quanto nas conversas de rua: milhões de eleitores de Serra desertaram, indignados, declarando-se fartos do baile de máscaras promovido pelo candidato.
A associação farsesca não correspondeu a um equívoco episódico, mas foi o prolongamento e a conclusão lógica de uma estratégia de campanha alicerçada sobre a abdicação do direito de fazer oposição. Seria um erro político, ainda que uma verdade factual, afirmar que Serra traiu seu eleitorado. O que ele fez foi desrespeitar o eleitorado em geral – e, portanto, a democracia – ao negar-lhe a oportunidade de escolher entre situação e oposição. A sua derrota não será um fracasso eleitoral, evento normal no sistema democrático, mas o sinal anunciador de uma falência política.
Bem antes do gesto catastrófico, a campanha já se equilibrava precariamente sobre uma corda frouxa, trançada com os fios complementares da arrogância e da covardia. Arrogância: a crença quase mística nos efeitos da comparação entre as biografias de Serra e da candidata oficial. Covardia: a decisão inabalável de não confrontar o lulismo com uma visão alternativa sobre o governo, o Estado e a Nação. Guilhon Albuquerque, defendendo a campanha do PSDB da crítica que formulei em A escolha de Serra (8/7), inspirou-se nas metáforas primitivas de Lula e citou o técnico da seleção espanhola de futebol: a ordem era “jugar para ganar”, não para “sair engrandecido aos olhos de um setor da elite”. O que dizer disso agora, quando a realidade berra? Na democracia, eleições são para esclarecer. “Jugar para ganar” é orientação típica de potenciais ditadores, que pretendem fraudar. Ou de candidatos que tratam os cidadãos como estúpidos – e pagam o preço cobrado por tal escolha.
Dilma Rousseff, o pseudônimo eleitoral de Lula, era a favorita desde o tiro de largada, por razões óbvias, mil vezes expostas. Isso não significa que inexistia uma disputa competitiva, como pontificam analistas seduzidos por uma estranha noção de destino histórico. Mas para ter uma chance de mudar o cenário prévio Serra precisaria agir como estadista – isto é, como a figura que se ergue acima das circunstâncias, desafia o senso comum, afronta setores de sua própria base partidária e oferece aos eleitores uma narrativa política transparente, equilibrada e franca. É bem fácil pinçar críticas fragmentárias de Serra ao governo e à sua candidata. Contudo, como estilhaços de uma granada perdida, elas nunca formaram um conjunto coerente, capaz de sintetizar uma aspiração de mudança.
A abdicação de Serra tem um precedente ainda vivo na memória pública. Quatro anos atrás, a campanha presidencial de Geraldo Alckmin entrou em colapso logo após o primeiro turno, quando o candidato se cobriu com os logotipos das empresas estatais para sublimar o debate sobre as privatizações de Fernando Henrique Cardoso. Os dois postulantes do PSDB destruíram a si mesmos por meio de gestos paralelos de rendição política. Há nisso algo mais que uma coincidência.
No debate televisivo inaugural, Serra proclamou que não disputa eleições “de olho no retrovisor”. A frase de efeito, que denota desconforto com o passado, veicula uma canhestra tentativa de passar uma borracha sobre a História e evidencia uma fundamental incompreensão da democracia. Eleição é o momento em que a Nação revisita suas opções pretéritas e reflete sobre as diferentes estradas que conduzem ao futuro. Tanto quanto Alckmin, Serra resolveu circundar a discussão sobre o governo FHC – e exatamente para isso pendurou um retrato de Lula ao lado do seu. O repúdio tácito à própria herança, com seus acertos e erros, anulou qualquer possibilidade de analisar criticamente o governo Lula e o PT, inscrevendo-os numa narrativa inteligível da trajetória recente do Brasil.
Lula depreda cotidianamente a inteligibilidade da política democrática. A campanha de sua candidata, uma fábula sobre o “pai da Nação” que entrega seus filhos aos cuidados transitórios da “mãe do povo”, assinala um novo ápice no percurso deflagrado antes mesmo de 2002. Serra converteu-se, agora, em cúmplice ativo dessa operação de esvaziamento do sentido da linguagem política. Uma diferença crucial, entretanto, não pode ser esquecida: o lulismo, autoritário em essência, nutre-se da babel de sons indecifráveis, enquanto as correntes democráticas só podem florescer no terreno constituído pela ordem da sintaxe e da gramática.
O lulismo não depreda apenas a linguagem, mas também os direitos. São múltiplos, convincentes, os indícios de que um “núcleo de inteligência” da campanha de Dilma comandou as quebras em sequência do sigilo fiscal de pessoas próximas a Serra, com o intuito provável de montar um plano eleitoral de emergência para a hipótese de uma disputa renhida. Serra (e, por sinal, todos os candidatos comprometidos com as garantias democráticas) tem não só o direito, mas o dever de expor na campanha eleitoral as sementes do Estado policial, relacionando o que se passa hoje com o episódio da invasão do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Desgraçadamente, porém, a denúncia só atingirá aqueles que, por já reconhecerem uma prática reiterada, não precisam dela. Os demais, uma larga maioria, não entenderão a narrativa sem nexo de um acusador que pretende associar sua imagem à do governante acusado. Mais adiante, não culpem o povo – que não tem a oposição que merece.
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 02/09/10
Estamos num mato sem cachorro!
parabens pelo texto.
Continuo eleitor de Serra, mas…
Realmente ele não precisava fazer o que fez. Lamentável.
Em meu trabalho de formiguinha pró-Serra, confesso, ficou difícil.