Inicio hoje um conjunto de artigos sobre o gasto público, com foco na despesa primária (ou seja, exceto os juros) da União. Não vou tratar do gasto com juros, por duas razões. A primeira é porque ele não é uma escolha do Tesouro: este pode decidir gastar menos no ministério A e mais no B, mas não pode optar por gastar tantos bilhões de reais a menos com juros, para utilizar esses recursos em algum programa, pois simplesmente não é assim que funciona a política monetária. E a segunda é porque dediquei um artigo bastante detalhado a esse tema há pouco tempo.
Por que o gasto primário é relevante? Pelos seguintes motivos:
1) Dívida pública. A trajetória do gasto público é chave na determinação da relação dívida/PIB. Depois desse coeficiente ter caído entre 2002 e 2008, voltou a aumentar em 2009 e é importante retomar a trajetória de queda, de 2010 em diante; A despesa primária do governo central aumentou de 14% do PIB em 1991 para 23% do PIB em 2010
2) Inflação. No Brasil, depois do Plano Real, o peso da política anti-inflacionária descansou predominantemente na política monetária, com as consequências negativas já conhecidas. A responsabilidade relativa entre os juros e o resultado primário na preservação da inflação na meta deve ser rebalanceada, para não sobrecarregar o esforço do Banco Central;
3) Investimento. A formação bruta de capital (FBK) é igual à poupança total – doméstica e externa. O Brasil tinha uma FBK de 18% do PIB em 1995, no começo do Plano Real e o número deve ser novamente da ordem de 18% do PIB em 2010. Em 15 anos, não avançamos nada nesse quesito, fundamental para o crescimento do país. Para aumentar a taxa de investimento, precisamos elevar a poupança doméstica e, para tal, um melhor controle da trajetória e da composição do gasto são fundamentais; e
4) Setor externo. A poupança externa é o resultado em conta corrente com sinal trocado. O Brasil tinha equilíbrio externo antes da estabilização de 1994. Nos primeiros anos desta até 1999, forjou-se um desequilíbrio (déficit em conta corrente, ou poupança externa) que alcançou quase 5% do PIB. Depois, anos de ajuste fizeram que em 2004 o Brasil alcançasse um superávit em conta corrente de mais de 1% do PIB. Agora, em 2010, podemos ter novamente um déficit externo da ordem de 2 % a 3 % do PIB. É recomendável que o país não abuse desse expediente, que tantos traumas causou no passado quando o financiamento externo era interrompido por alguma crise. Para não depender desses recursos, será preciso aumentar a poupança doméstica, o que novamente nos remete à importância do incremento da poupança pública.
O que mostram os dados? Eles indicam que a despesa primária do governo central – incluindo as transferências a Estados e Municípios – aumentou de 14% do PIB em 1991 para uma estimativa de 23% do PIB em 2010: um incremento de 9% do PIB, sendo que sabemos que o investimento federal era de 1% do PIB há 20 anos e terá um peso de magnitude similar em 2010. Ou seja, toda a variação do gasto foi de despesas correntes. O total, expresso como proporção do PIB, aumentou em cada um dos governos. Ele passou de 14% do PIB em 1991 – primeiro ano para o qual tais estatísticas estão disponíveis – para 17% do PIB em 1994, 18% em 1998, 20% em 2002, 21% em 2006 e uma estimativa de 23% em 2010. A contrapartida da estagnação histórica do investimento, no contexto da expansão da carga tributária, foi o avanço do gasto corrente. E, se quisermos aumentar o investimento, será preciso conter esse processo.
O aumento da variável gasto/PIB foi praticamente ininterrupto. Cedeu apenas em 1995, por conta da distorção associada ao fato de que o PIB da série revista do IBGE, 10% maior que a série original, se iniciou apenas naquele ano; em anos de ajuste – 1996, após o susto fiscal de 1995; 1999 e 2003; e, marginalmente, em 2008, quando o PIB teve uma forte expansão. Nos demais anos, houve só crescimento do coeficiente. Ao todo, assumindo para 2010 um crescimento real do gasto de 9,5 % e do PIB de 7,5 %, em 19 anos teremos tido uma variação real do gasto primário de 5,9% a.a., contra um crescimento do PIB de 3,1% a.a. O gasto cresceu quase duas vezes o crescimento do PIB! Pode-se alegar que, se o PIB tivesse crescido mais, esse aumento do coeficiente poderia não ter ocorrido. O problema é que entre 2003 e 2010 o PIB terá crescido a uma média maior, de 4,4% a.a. e, mesmo assim, a despesa primária subiu 4% do PIB!
Em nossos próximos encontros mensais, irei abordar com maiores detalhes cada um dos ingredientes dessa conta. O objetivo é que, ao final, o leitor interessado conheça um pouco mais nossas finanças públicas. Caberá ao leitor depois avaliar se atingi o meu propósito.
Fonte: “Valor Econômico”, 08/11/2010
Necessário se faz analisar a relação juros/PIB antes e após o Plano Real.
E saber o percentual de juros implica consumir de receitas tributárias.