A força da necessidade obriga indivíduos e instituições a se adaptarem aos novos contextos e realidades. Charles Darwin, o naturalista inglês e pai do evolucionismo, já dizia que espécies incapazes de se adaptar às mudanças do seu hábitat perecem. A força da necessidade transformou o desprestigiado Congresso Nacional na instituição condutora das reformas estruturais do País.
A mudança de atitude dos parlamentares é fruto de três grandes transformações. Primeira, Bolsonaro implodiu o presidencialismo de coalizão, que estabeleceu um ciclo vicioso de troca de verbas e de indicação política para cargos públicos, como moeda corrente para se aprovarem projetos no Congresso. Essa lógica perversa atendia predominantemente aos interesses corporativistas e aos desígnios do fisiologismo, raramente contemplava o interesse nacional. A redução das artérias que alimentavam o fisiologismo provocou uma importante mudança de atitude. O “Centrão” – símbolo do bloco fisiologista no Congresso – compreendeu rapidamente que havia secado o escambo de verbas e cargos por votos e mudou de atitude: resolveu aderir à articulação política em prol da reforma da Previdência, contribuindo para somar os votos necessários para sua aprovação na Câmara dos Deputados.
Segunda, graças ao estilo de governar de Bolsonaro, houve uma mudança radical do eixo do Poder Executivo para o Legislativo. Bolsonaro esvaziou o protagonismo da Presidência da República com seu comportamento errático. Ao adotar como mote pessoal a Lei de Gerson – de levar vantagem política em tudo, não importa se as reformas serão aprovadas ou não – Bolsonaro revela a esquizofrenia do seu governo. Se o Congresso votar as reformas, ele se apresenta como “vencedor”; se perder, veste o figurino de defensor do povo (isto é, dos interesses corporativistas) e do herói bíblico David lutando contra Golias, representado na alegoria bolsonarista pelo Congresso e pela “velha política”. Assim, o presidente se transformou num interlocutor pouco confiável, que não honra compromissos firmados com os parlamentares, ignora o trabalho paciente (e necessário) da articulação política e tampouco se empenha em defender com convicção os projetos prioritários do seu governo. O trâmite da reforma da Previdência no Congresso ilustra bem o estilo de governar do capitão.
O presidente enviou ao Legislativo uma proposta de reforma da Previdência e, em seguida, cruzou os braços. Não trabalhou com afinco por sua aprovação no Parlamento e ainda jogou contra a sua própria reforma, deixando o seu partido, o PSL, liderar a defesa dos privilégios imorais do lobby do corporativismo dos policiais. Uma vergonha para um governo que se diz avesso à “velha política”.
No dicionário particular de Bolsonaro, “nova política” significa que o presidente colhe os frutos políticos (e eleitorais) das reformas modernizadoras e deixa sempre o ônus de aprová-las para o Legislativo. O Congresso descobriu rapidamente que não é possível construir parcerias construtivas em torno das reformas com um governo que segue a Lei de Gerson.
Esse impasse produziu a terceira mudança importante. Na ausência de um presidente capaz de dar rumo ao País, os parlamentares resolveram seguir o próprio caminho e conduzir as reformas modernizadoras de que o Brasil necessita. O Congresso aprovou a sua reforma da Previdência, assim como vai votar a sua reforma tributária e a sua reforma administrativa – um projeto importantíssimo de redesenho das carreiras públicas que introduzirá conceitos de meritocracia e de avaliação de desempenho para os servidores públicos. Uma democracia eficiente requer a existência de um quadro de servidores públicos qualificados e competentes. Eis razão por que o Brasil precisa urgentemente de um plano de carreira que valorize o servidor público por sua capacidade, seu mérito e seu desempenho ao prestar serviço de qualidade à população.
Essas reformas estruturantes serão conduzidas pelo Parlamento. O governo será mero coadjuvante, quando não potencial adversário, como foi o caso do comportamento do presidente Bolsonaro e do PSL na reta final da votação da reforma da Previdência, ao se transformarem nos defensores dos interesses corporativistas dos policiais. Um país não pode ficar à deriva de um governo errático, por isso a força da necessidade fez surgir novas lideranças para ocupar o vácuo deixado pela ausência da liderança presidencial. A combinação fortuita do pragmatismo dos novos presidentes da Câmara dos Depuados e do Senado, Rodrigo Maia e David Alcolumbre, e da nova geração de parlamentares – comprometida com as reformas estruturais do País – mudou a dinâmica do Congresso.
Criou-se o senso de urgência em torno das reformas, que, somado à situação dramática das finanças públicas da União, dos Estados e dos municípios e à inescapável lógica de que governos não poderão atender às demandas da população por melhorias na segurança, na saúde e na educação se não forem capazes de recuperar a capacidade financeira de realizar investimentos públicos, as prioridades mudaram no Congresso. A agenda das reformas do Estado passou a prevalecer sobre os assuntos paroquiais e o Congresso voltou a ser a Casa onde se debatem os interesses nacionais e o rumo da Nação.
A força da necessidade promove a transformação e a extinção de espécies e de instituições. O Congresso se engrandece quando discute com maturidade e propriedade e aprova as reformas modernizadoras do País. O presidente se apequena quando se apega à sua pauta insignificante de costumes e à defesa de interesses corporativistas em detrimento dos interesses do Brasil. Nesse sentido, Bolsonaro está prestando um grande serviço ao País: está sepultando a reputação do presidencialismo e preparando o terreno para o parlamentarismo.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 27/07/2019