A França, pátria da Revolução, é um país essencialmente conservador. Fernand Braudel enfatizou isso: “Todos os países da Europa viveram, durante séculos, em economia camponesa. Em seguida, todos dela se afastaram, mais ou menos rápido. A França, mais lentamente que outros – esse atraso seguramente marcou sua história profunda”. A nostalgia de uma época de ouro, bem como o temor da mudança, contaminam a política francesa. Eis aí a raiz das ambivalências da campanha eleitoral em curso, na qual os dois candidatos principais se entregam à dissimulação, fingindo ignorar as fraturas nos pilares que sustentam o modo de vida francês.
Nicolas Sarkozy imita Charles de Gaulle, enquanto seu adversário socialista, François Hollande, imita François Mitterrand. De Gaulle e Mitterrand conciliaram a “França eterna” à “França europeia”, quando tal operação era viável. Seus imitadores não podem mais fazê-lo, a não ser como prestidigitação retórica. A crise do euro ronda as portas da França. O país viveu de crédito enquanto perdia competitividade em relação à Alemanha. As sirenes de alarme já soaram, no terreno das finanças, pelo descolamento entre as taxas de juros cobradas sobre títulos públicos alemães e franceses, e no da política, pela submissão de Sarkozy à orientação definida por Angela Merkel. Mas, apesar do ruído inconfundível, o gaullista e o socialista navegam nas águas plácidas da irrealidade.
“Globalização” é o nome do mal, na visão tradicional de quase toda a elite política francesa, à esquerda e à direita. Até há pouco, “Estados Unidos” era o outro nome desse mal e “Europa” aparecia como o antídoto infalível: a concha protetora da nação francesa. Nos últimos dois anos, entretanto, sob o impacto do desmoronamento do edifício das dívidas públicas denominadas em euro, “Europa” converteu-se em mais um sinônimo de “globalização”. Nos extremos do espectro político, o dilema encontra uma resposta coerente, ainda que desastrosa: a rejeição nacionalista à Europa. Tal rejeição não pode ser incorporada pelos dois candidatos principais – mas eles também não podem recusá-la por inteiro.
No início, Sarkozy organizou seu discurso eleitoral em torno da razão pragmática. A França deveria equilibrar seu orçamento, para ser uma segunda Alemanha, e ele faria campanha como o parceiro indispensável de Merkel no empreendimento titânico de salvação da Europa. As sondagens indicaram, contudo, que o personagem não lhe assegurava nem mesmo a passagem para o segundo turno. O presidente investiu, então, sobre o eleitorado de Marine Le Pen, da Frente Nacional, curvando-se à “França eterna” e retomando as senhas xenófobas que guarda como reserva para emergências: a “identidade nacional” e o “fracasso da integração”. O tema da imigração foi conectado aos problemas do desemprego, da segurança e do terrorismo. O Hexágono francês acossado se defenderá da “peneira europeia”, bradou Sarkozy, ameaçando retirar o país do Tratado de Schengen, de livre circulação de pessoas.
Uma “França do não” emergiu majoritária no referendo sobre o projeto de Constituição Europeia, em 2005. Gaullistas e socialistas se engajaram, juntos, na campanha do “sim”, sofrendo uma derrota desconcertante. O heteróclito polo da negação reuniu a extrema esquerda aos semifascistas da Frente Nacional, entrelaçando narrativas revolucionárias e nacionalistas. O resultado, um divisor de águas na história política francesa, provocou a cisão no Partido Socialista que originaria o Partido de Esquerda, de Jean-Luc Mélenchon, e a Frente de Esquerda, uma coalizão dos dissidentes socialistas com o Partido Comunista e grupos trotskistas. Na campanha em curso, a verdadeira novidade é a ascensão de Mélenchon, que aparece no terceiro lugar, à frente de Le Pen.
Nos comícios de Mélenchon ouvem-se os ecos longínquos da Comuna de Paris. “Quando já não existe liberdade, a insurreição é um dever sagrado da República”. Ele fala numa “revolução dos cidadãos”: a convocação de uma Constituinte para definir novos direitos sociais e desenhar os contornos de uma Sexta República. Promete romper com a “Europa neoliberal”, retirar a França da Aliança Atlântica, dobrar o salário mínimo e, retomando o fio solto por Mitterrand em 1983, reorganizar a economia ao redor de um núcleo estatal formado pelas instituições financeiras e pelas indústrias estratégicas. As sondagens indicam que a esquerda renascida em 2005 avança sobre o eleitorado do anel industrial do leste francês, uma ampla base operária cedida pelos comunistas à Frente Nacional há duas décadas.
Hollande perdeu o primeiro posto nas sondagens eleitorais para Sarkozy, mas tem assegurado o seu lugar no segundo turno e, segundo as interpretações correntes, marcha rumo a um triunfo final propiciado pela transferência de votos de Mélenchon. O socialista comprometeu-se a reverter a reforma previdenciária de Sarkozy, aumentar a taxação sobre os mais ricos e renegociar o pacto fiscal europeu, a fim de reduzir os cortes previstos nos gastos públicos. No segundo turno, contudo, a dinâmica da conquista dos eleitores de Mélenchon exigirá algo mais: um apelo direto à “França do não”. A inclinação à esquerda, aparentemente inevitável, terá um elevado preço político.
A prestação inicial será cobrada por Sarkozy, que já ensaia o ângulo de ataque. “Em 1981, os socialistas esvaziaram o cofre em dois anos. Em 2012, será preciso apenas dois dias. Eles nos levarão à Grécia ou nos levarão à Espanha”, alertou o presidente, referindo-se ao tímido programa de reformas incrementais de seu oponente. Na hipótese provável de vitória de Hollande, os eleitores enganados cobrarão a prestação final. Então a curta primavera da dissimulação se dissolverá no tórrido verão da realidade e a crise do euro atingirá um patamar mais dramático, dilacerando o tecido frágil do sistema político francês.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 12/04/2012
A França de Sarkozy esqueceu do socialismo e se tornou uma pequena filial dos eua. Levou seu Povo as más condições atuais. Menor fôrça política e mais problemas sociais.
Agora, terá que passar por reformas muito maiores para garantir seu futuro.
Esperemos por Hollande.