A Grande Transformação é o título da primeira seção do documento com as diretrizes de um eventual governo Dilma Rousseff. A expressão não se refere ao que fazer no futuro, mas à visão do que ocorreu no atual governo. É um documento político, sendo natural que apresente uma leitura engajada do passado e um amplo rol de boas intenções. Não seria razoável dele exigir a isenção e objetividade que se poderia esperar, por exemplo, de uma análise acadêmica. Isso posto, porém, há que considerar que nele estão as linhas mestras do que pode vir a ser o próximo governo. Cabe, portanto, discuti-lo com alguma profundidade, como aliás se deve fazer com os projetos de todos os candidatos.
O documento cobre áreas tão diversas como crescimento econômico, políticas sociais, reforma agrária, direitos de minorias etc. Algumas propostas, como o controle dos meios de comunicação, que remete à situação na Venezuela, certamente gerarão polêmica. Numa leitura seletiva, há pelo menos outras quatro questões que também merecem mais debate.
Primeiro, a interpretação de que o atual governo foi de ruptura. O Brasil vem se transformando há duas décadas, pela soma das mais variadas reformas. A grande transformação do atual governo não se deu, porém, nas políticas adotadas, mas na passagem de ser “contra tudo isso que está aí” – o PT se opôs, por exemplo, ao Plano Real, ao Fundef e ao Proer – para uma postura de defesa dessas políticas. Isso não é uma crítica. Como colocado pelo presidente Lula (“Estado de S. Paulo”, 19/02/2010), pior teria sido insistir na posição anterior, sendo ela inviável.
Assim, apesar de o governo ter introduzido algumas inovações importantes, como o ProUni e o Minha Casa, Minha Vida, sua tônica principal foi a de reforçar programas e políticas herdados de administrações anteriores. A política macroeconômica é o caso mais notório, mas não o único: o Bolsa Família saiu do Bolsa Escola; o Fundeb do Fundef etc. Enquanto isso, programas como o Fome Zero e o Primeiro Emprego eram deixados pelo caminho.
Ao manter o coração das políticas que herdou, não reverter medidas como a abertura comercial e a privatização, e até avançar com outras reformas, como a da previdência dos funcionários públicos, o atual governo surpreendeu os investidores, mostrando que essas políticas independiam do governo do momento. Junto com o cenário externo favorável, até meados de 2008, essa surpresa positiva foi a grande alavanca do bom desempenho econômico do Brasil em 2004-10. É importante que essa postura seja mantida na próxima administração. O documento destaca a intenção de ampliar a intervenção do Estado na economia, inclusive via seleção de ganhadores, na linha das políticas adotadas no pós-crise, como a ininterrupta expansão do crédito público e o uso de subsídios para promover a concentração setorial (e salvar empresas quebradas).
Na mesma toada, ele realça “a saúde de nosso sistema bancário, especialmente público”, que serviu de anteparo à crise de 2008. Mas não menciona que essa saúde resultou do saneamento realizado pelo governo anterior, ao custo de muitos bilhões de reais. Foi exatamente a concessão de subsídios a segmentos econômicos influentes que virtualmente quebrou essas instituições. Mais do que precisão histórica, essa lembrança deveria servir de alerta para o risco de se repetir erros pretéritos.
Além de regressivas, onerosas para o erário e prejudiciais aos consumidores, essas iniciativas contrastam com o padrão observado até a primeira metade do atual mandato presidencial, que enfatizou a atração do investimento privado como resposta à dificuldade do governo de expandir a infraestrutura, por falta de recursos e restrições processuais (Lei de Licitações). Um exemplo é a privatização de rodovias federais. Em especial, essa diretriz contrasta com a tendência global de atrair a iniciativa privada para realizar atividades operacionais em serviços sob responsabilidade do Estado.
A nova fronteira na relação Estado-setor privado não está, portanto, no uso da privatização como alavanca do investimento, mas na parceria público privada na busca de melhorias na provisão de serviços públicos como saúde, educação, segurança etc. Destacam-se, nesse caso, o foco tanto na maior capacidade organizacional e de gestão do setor privado, como nas parcerias com entidades sem fins lucrativos. O sucesso desse modelo em nível subnacional forçará uma discussão sobre seu uso em nível federal, como já tentou, sem sucesso, o atual ministro da Saúde.
Infraestrutura é outro tema recorrente no documento. O baixo investimento nessa área cria o risco de que nosso crescimento seja restrito por falta de energia ou pelo congestionamento de estradas e portos. Em 2003/07, o Brasil investiu apenas 2% do PIB em infraestrutura, contra 2,8% em 2001/02 e os cerca de 5% do PIB que se estima ser necessário investir. O documento promete inversões em hidrelétricas, rodovias, ferrovias, portos, armazéns etc. Mas ele também traz o compromisso de ampliar significativamente o gasto corrente. Qual a prioridade? Como reverter a tendência de sacrificar o investimento público mesmo com o aumento vertiginoso da carga tributária?
O documento pouco fala da educação básica, apesar de nossas grandes carências nessa área, como demonstram as avaliações internacionais. O governo federal teve historicamente um papel importante nessa área, como na administração anterior, que criou o Fundef, universalizou o ensino fundamental, e institui um sofisticado sistema de avaliação. O Fundeb foi uma medida importante, mas o desafio da melhoria da qualidade continua posto, sem que se conheçam as propostas de como superá-lo. O atual governo privilegiou a educação superior, dando comparativamente menos atenção à educação básica. Pode-se esperar mudanças nessa abordagem?
É pouco provável que os candidatos competitivos mudem o coração da política econômica, ainda que haja gradações importantes entre eles. Mas agora é preciso ir além da não-mudança. É hora de propor e dizer como implementar as novas transformações que vão permitir ao país continuar mudando para melhor.
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