Em algum dia, no início dos anos 80, eu voltava da faculdade quando o ônibus onde eu estava levou uma fechada de outro ônibus. O motorista, ensandecido, pisou no acelerador e saiu pelas ruas do Rio furando sinais, tentando alcançar o motorista ofensor.
Ele finalmente o encontrou, parado em um ponto. Sem pensar duas vezes – e para terror de todos os passageiros – ele jogou o ônibus em cima do outro veículo. Estilhaços dos vidros caíram aos meus pés. Por pouco não me machuquei gravemente.
O tempo passou e pouco mudou nos transportes do Rio.
Os motoristas do BRT entraram em greve. O presidente do consórcio de empresas que opera o sistema diz que não há dinheiro para pagar salários ou combustível.
Como isso é possível?
Aqui vai outra história. Há alguns anos atrás, quando o BRT ainda estava em construção, um de meus amigos teve a chance de conversar com o então vice-governador do Rio, e lhe disse sobre sua preocupação com o BRT que, na sua visão, seria um desastre.
A resposta do político foi:
“Sabemos que o BRT não é a solução, mas é o que dá pra fazer até a eleição”.
E isso resume tudo: os transportes do Rio vão mal porque obedecem a uma lógica maluca na qual o que menos importa é o usuário.
Quem usa ônibus no Rio sabe do que estou falando. São carrocerias adaptadas sobre chassis de caminhão, quentes, desconfortáveis, inseguros e, frequentemente, conduzidos a velocidades letais.
É verdade que a queda do número de passageiros, causada pela pandemia, está ferindo de morte várias empresas de transportes. É verdade que as empresas tentaram alertar o poder público sobre o desastre iminente. Mas esse golpe atinge um sistema que já era caótico, ineficiente e desrespeitoso com o usuário.
O sistema de transportes do Rio serve principalmente aos políticos e às empresas a eles associadas. O usuário que se vire.
O tempo de viagem entre casa e trabalho no Rio é o MAIOR de todas as regiões metropolitanas do país. Os usuários de menor renda são os que mais gastam tempo e dinheiro com transporte.
Vejam: o primeiro passo para que um sistema de transportes seja eficiente é ter um trajeto adequado para a rede de linhas de ônibus e integração total entre ônibus, trem, metrô e barcas. No Rio, além da integração ser pouca, cara e ruim, muitas linhas de ônibus têm o mesmo trajeto que o trem e o metrô. Ao invés de se complementarem, se canibalizam – e, no final, perdem todos, principalmente o usuário, que sempre paga a conta de um jeito ou de outro.
Os contratos que o estado e a prefeitura fazem com as empresas, através de Editais de Concessão e Termos de Adesão das Permissões e Autorizações, são cheios de inconsistências que reduzem a concorrência entre as empresas e a sua eficiência.
Não existe, nesses contratos, um mecanismo de avaliação de desempenho com penalidades e possibilidade de cancelamento da outorga. Não há uma garantia clara de transferência de parte dos ganhos de produtividade das empresas para os usuários. A especificação dos serviços oferecidos é sempre frágil, ambígua ou incompleta, e os prazos excessivamente longos, sem coerência com amortização de ativos
As exigências absurdas dos editais fazem com que as empresas habilitadas a concorrer sejam sempre as mesmas.
Para completar, o poder público não tem acesso direto às informações sobre número de passageiros e faturamento, que ficam em um sistema sob o controle das empresas.
O que é preciso fazer? Não é nenhum mistério.
Se o objetivo é melhorar a qualidade do serviço, reduzir as tarifas e os tempos de viagem, é preciso trazer eficiência e transparência aos contratos, com uma operação que atenda à necessidade dos passageiros, e não das empresas.
Para evitar o colapso do setor é preciso rever os contratos e redesenhar os trajetos das linhas de ônibus, para que elas sejam realmente integradas com trens, metrô e barcas, e estudar uma nova licitação que traga inovação, transparência e redução de tarifas.
O sistema de bilhetagem, hoje operado pela RioCard, deve ser operado pelo município ou por uma entidade independente, para que a administração pública tenha acesso imediato e direto às informações.
E para que os transportes do Rio de Janeiro estejam, finalmente, a serviço dos usuários.
Foto: Divulgação/Prefeitura do Rio de Janeiro