O isolamento a que estamos submetidos, desde que tomamos consciência dos riscos da Covid-19, vai se encerrar daqui a algum tempo. Não sabemos se teremos uma segunda onda mais mortífera que a atual, como ocorreu com a gripe espanhola, mas já é tempo de tentarmos entender o que se passou dentro das casas neste período.
Na impossibilidade de se fazer já uma pesquisa mais ampla sobre o que foi vivenciado pelas mais diversas famílias, inclusive as privadas da possibilidade de quarentena por trabalharem em atividades essenciais ou por não poder contar com nenhuma outra fonte de renda, permito-me fazer um relato em primeira pessoa —contando o que venho vivenciando e as reflexões que pude fazer sobre estes curiosos e tristes tempos.
Vivo num prédio em São Paulo que se localiza no mesmo terreno em que meu avô materno, nascido em Budapeste, construiu sua casa. Tenho, da janela da sala, quase a mesma vista que tinha na minha infância e, não raras vezes, chego a me emocionar. São lembranças fortes de relatos compartilhados e de pequenos detalhes da vida cotidiana. No empenho de arrumar o apartamento no início da quarentena, foram também inúmeras as fotos que encontrei de um século já encerrado.
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Lembrei-me disso ao ler hoje um post de um amigo mostrando-me uma foto de Budapeste. As cidades guardam história em casas e monumentos, mas também destroem lembranças boas quando governos autocráticos, guerras e racismo –muitas vezes combinados– excluem parte de seus cidadãos da possibilidade de desfrutar o que elas trazem de bom e de belo.
E isso para mim é o nexo entre cotidiano e história: são as lembranças compartilhadas em jantares de família que constroem as narrativas que, consolidadas, constituem a história das gentes, a história nem sempre registrada, mas que nos dá identidade e sentido de pertencimento.
Mas elas também podem ser traiçoeiras, posto que tendemos a glorificar um passado filtrado pela nossa dificuldade de lidar com memórias tristes, como bem mostra Hans Rosling em seu “Factfulness”. Apagamos, muitas vezes, da lembrança o que nos faz sofrer, exposições ao ridículo, preconceitos sofridos, exclusões. Por outras, tornamo-nos escravos do que nos foi feito e não logramos nos reerguer ou só o fazemos como guerreiros contra o inimigo percebido: o outro.
Esta noção de história, simultaneamente como a memória coletiva registrada e a soma de vivências cotidianas, deveria ser ensinada nas escolas. E temos agora uma razão adicional para isso: as crianças de hoje contarão um dia para seus netos como foi viver a pandemia, num Brasil em crise.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 12/6/2020