No horário reservado aos partidos políticos, Plínio de Arruda Sampaio notabilizou-se pela defesa da igualdade social. Embora não entrasse em pormenores antropológicos e históricos, sua visão se resumiu a um ponto: limitar a posse da terra em mil hectares, e garantir que o excedente beneficie os sem-terra, segundo sua visão distorcida de reforma agrária, em que a justiça social no campo é obtida com a distribuição de terras.
A igualdade social é um mito que não precisaria ser reeditado se o Brasil não fosse o laboratório de ideias jurássicas ressuscitadas pela oportunidade do horário eleitoral televisivo. Em seu livro ‘O Mito e o Homem’ (Edições 70, Lisboa, 1972) Roger Caillois nos conta da dinastia Tchéu da China que, durante 866 anos e 34 imperadores, reinou sob o conceito dos Ritos Imutáveis. Eram leis e um conjunto de instruções, normas e procedimentos que definiam a conduta de todos os homens e mulheres do Império. Havia leis específicas que condenavam à pena de morte, no caso de propagação de notícias falsas, e que no julgamento dos altos funcionários pudessem levar o país à instabilidade.
O objetivo era o de uniformizar toda a vida do império. Para isso, foram definidos os Cinco Princípios Cardeais e as Três Virtudes Indispensáveis. Eram condenados à morte todos aqueles que propagassem falsas informações, assim como os que procurassem introduzir novos utensílios e técnicas aos existentes, chegando ao ponto de abranger os caracteres da escrita e a reforma dos costumes, como introduzir mudanças na alimentação, no sono e na procriação.
Caillois não viveu o suficiente para visitar a exposição dos Guerreiros de Xian, uma sensacional descoberta arqueológica do século III A. C., em que um exército de terracota representava os guerreiros do imperador Qin, todos portando os mesmos trajes, o mesmo estilo de cabelo, calçados, armas, etc. Mas nos conta o que os manuscritos da época narravam sobre esta ilusão: o de impedir que o futuro diferisse do passado, controlando o presente. Isso não evitou que o espírito de rebelião se instalasse contra a ordem, em parte motivado por fatos reais, em parte por superstições, já que o rei estava cercado de adivinhos e feiticeiros com o objetivo de descobrir a poção da imortalidade.
“Mas as reformas do imperador não entraram na ‘mentalidade acanhada dos estúpidos letrados’, de tal modo que o grande juiz Li-Seu os considerou como obstáculos à ordem nova; segundo este magistrado, eles procuravam argumentos no passado para denegrir o presente e inquietar o povo. Tornavam belas as suas utopias, para que a realidade, por contraste, pudesse parecer feia. Ainda que apenas o dono do império pudesse distinguir o preto do branco e ditar a lei, os únicos capazes de avaliar o seu sentido pessoal, juntavam-se para criticar o soberano perante o povo. Com isso, Li-Seu pediu que todos os livros, à exceção dos tratados de medicina, farmácia, profecia, agricultura e jardinagem, fossem entregues às autoridades policiais para serem queimados, que todo aquele que discutisse um texto das Odes ou dos Anais fosse condenado à morte e o seu cadáver exposto no mercado público, que todo aquele que fizesse uso destes textos com o fim de denegrir o presente fosse exterminado juntamente com toda a sua família, e que tivessem o mesmo fim dos delinquentes os funcionários que se mostrassem complacentes na aplicação da lei. Como o imperador acedeu a este pedido, a lei foi aplicada e toda a literatura antiga chinesa desapareceu por efeito desta medida, junto da qual o archote do califa e as fogueiras de Savonarola aparecem como manifestações isoladas de um humor pueril” (CAILLOIS, p.96).
“Assim, sob o domínio dos Tchéu, não interessava absolutamente nada que o Império fosse forte ou justo, ou seja, o que for desse gênero, porque o Império não tinha finalidade fora do seu ser. O que unicamente contava era que o dia-a-dia continuasse a ser exatamente o que era, de qualquer modo, até fatigar o tempo. É que, num certo sentido, o tempo, que podia a qualquer momento dar origem à variação, era o único inimigo que o Império temia; mas como esse inimigo era apenas temível em função da variação, bastava simplesmente obter um triunfo sobre ela para impedir o tempo de ser um devir. Por isso, era considerado um crime contra o Estado toda e qualquer tentativa de introdução nos ritos de uma modificação, por mais diminuta que ela fosse” (CAILLOIS, p. 97-98).
Ao contrário do passado chinês, o que nossa tradição ocidental estabelece, a partir da herança helênica, é a diferença entre vida privada e vida pública. Na vida privada somos todos diferentes. Na vida pública as coisas são diferentes. A noção de que somos seres únicos, singulares, insubstituíveis, corresponde à vida privada. Na vida privada temos o direito à diferença. Na vida pública, o propósito da organização social é a igualdade de todos perante a lei. Uma sociedade altamente desenvolvida implica em tanto mais igualdade legal quanto maior a noção das interações humanas na comunidade. Mas na vida privada, tudo é guardado pelo direito à diferença. Daí porque o sigilo bancário deve ser respeitado.
A vida privada se constitui em torno do reconhecimento da diferença e da liberdade de cada um em construir seus próprios valores. Uma pessoa pode achar mais importante ganhar dinheiro, e outra estudar. O resultado é que elas certamente serão desiguais no estilo de vida e, naturalmente, na quantidade de bens que irão amealhar. Uma pessoa pode ter 500 hectares de terra e sentir que é o suficiente para si e seus filhos. Outra pode pensar diferente e adquirir mais terras devido a oportunidades, mais perspicácia nos negócios, mais diligência na vida, ou simplesmente por sorte, ambição, ou por fatores regionais, sazonais, e um número não controlável de eventos circunstanciais. A essência da liberdade reside justamente no fato de que não existam limites muito definidos sobre o quanto se pode prosperar, em reconhecimento ao fato de que a prosperidade de um auxilia os demais na comunidade em que vive.
Se a igualdade fosse uma ideia mandatória na vida privada das pessoas, o governo deveria abolir a loteria. Semanalmente milhões de brasileiros vão às casas lotéricas para serem diferentes do que são, pois não há nada mais desigual do que alguém amealhar uma mega-sena, e todos os outros se conformarem com a falta de sorte. Mas é por causa da aceitação de que somos desiguais em aptidões, talentos, e até mesmo na sorte, no benefício do acaso, que temos que admitir que igualdade só existe na construção dos direitos, não na obtenção de bens.
Para alguém que se apresenta como procurador de justiça aposentado, Plínio deveria focar em nossas desigualdades legais, a começar pelo embaraçoso apartheid da previdência social, onde alguns se aposentam como nobres e outros como súditos, senão como escravos.
Mas Plínio não o faz porque a reforma agrária é uma das ideias gerais que servem para encobrir as deficiências intelectuais de uma teoria moribunda e de um passado assustador. Ouvindo seus clipes no Youtube, ficamos sabendo que ele se posiciona contra a transposição das águas do Rio São Francisco. Comungando com a opinião de um ou dois bispos esbravejadores do cangaço, Plínio demonstra que a irrigação do sertão vai ser prejudicial ao lavrador porque a chegada da água representa a inevitabilidade do agronegócio, já tão próspero em algumas regiões do nordeste. Não tendo o lavrador – supostamente no raciocínio de Plínio – capacidade para tal, terminará irremediavelmente entregando a terra aos novos cultivadores ou se tornando um empregado destes. Portanto, a imagem de um nordeste pleno de cultivares, com duas ou mais safras anuais, quase um paraíso na terra, com uma economia agrícola diversificada e dinâmica, não serve a Plínio. Sua solução é uma abstração mágica chamada reforma agrária, esta sim, tudo resolverá, mesmo que a prática tenha demonstrado o contrário.
Tal como na dinastia Tchéu da China descrita por Callois, a luta de Plínio contra a transposição das águas do Rio São Francisco é uma tentativa de impedir que o futuro seja diferente do passado, que seria o fim da miséria secular em nome de um elenco de argumentos fajutos e facilmente desmontáveis pela lógica do desenvolvimento econômico e social da região. Sabe-se que a Reforma Agrária, em alguns redutos políticos, substituiu a palavra envergonhada chamada comunismo. No passado, o igualitarismo tinha nome e sobrenome: marxismo-leninismo, comunismo soviético, bolchevismo, e quetais. Os economistas já gastaram muita tinta criticando o igualitarismo. Não vale a pena repeti-lo. Assim como os enxadeiros nordestinos são a alternativa preferencial do PSOL, e estes precisam estar distantes das águas, na época de Stalin havia o mito da justiça social acobertada por uma diferença abissal de salários. Independentemente do aspecto brutal da violência contra os direitos humanos, em 1937 os dados estatísticos na Rússia eram:
Isso demonstra que, na Rússia, na primeira década da revolução, o nível médio de vida aumentou em 54%. Em 1937 (em pleno expurgo), caiu para 32% em relação a 1913, e 86% em relação a 1929 – 8 anos antes. O próprio Stalin, uma vez consolidado como líder absoluto ao liquidar com a velha-guarda bolchevique, achava que o igualitarismo era uma ideologia pequeno-burguesa, permitindo a consolidação da nova classe tecno-burocrática do regime, o que afetava todos os pilares da sociedade, como indústria, agricultura e exército. Neste último, enquanto um soldado raso ganhava 10 rublos por mês, um tenente ganhava 1.000 rublos, e um coronel 2.400 rublos. No exército britânico, a proporção do salário de um soldado para um oficial era de apenas 1:4. E, na mesma época, no exército americano, era de 1:3, mas no exército soviético era de 1:100.
Poderíamos dispensar estes dados e nos concentrar nos salários brasileiros, tanto da ativa como da Previdência Social, embora já sejam conhecidos da maioria dos brasileiros. Utilizamos os dados da Rússia para demonstrar que regimes que pregam a igualdade são os que mais praticam a desigualdade. Vide os salários da China.
A desigualdade social poderia ser minimizada em termos de legislação salarial e proteção social. O que faz uma nação diminuir sua desigualdade não se relaciona com a limitação da propriedade ou dos bens de terceiros, mas como ela encara a riqueza e a legitima no apoio ao esforço individual e à criação de um ambiente de oportunidades. Portanto, a igualdade é uma questão “ambiental” relacionada à sociedade e sua mentalidade. Somente pela aplicação de homogeneidade de princípios a sociedade pode assegurar seu pleno desenvolvimento. E homogeneidade de princípios parte da existência de igualdade legal, de direitos iguais, de justiça imparcial e de legislação que impeça toda espoliação legal e privilégios, exatamente os nossos principais entraves. Assim, o promotor de justiça aposentado e candidato a presidente da república, Plínio de Arruda Sampaio, deveria se concentrar nestas questões para entender por que uma sociedade tem enxadeiros miseráveis e fazendeiros milionários.
O veneno não está, portanto, na vida privada. O veneno está na vida pública. E o horário político é a sua melhor vitrine.
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