A primeira fase de estudos sobre as relações raciais no País ficou decididamente marcada pela genialidade de Gilberto Freyre. Isto porque, a despeito de vários outros autores contemporâneos ou anteriores a Freyre terem desenvolvido estudos sobre as relações raciais no Brasil, a magnitude do trabalho freyriano merece uma reflexão autônoma e pontual.
Revolucionário, criativo, inovador, os adjetivos são insuficientes para resumir essa personalidade ímpar, que nadou contra a corrente ao tentar desenvolver a idéia da miscigenação como a nota essencial a distinguir o povo brasileiro. Antes dessa etapa, a maior parte dos estudos sobre o tema no Brasil se baseava em premissas pseudocientíficas sobre a inferioridade dos negros.
A importância de Casa-Grande & Senzala não pode ser observada exclusivamente a partir de seu conteúdo. É que além de ter se constituído em um livro revolucionário, tanto por causa do enfoque dado a temas muitas vezes já discutidos no Brasil, tanto pela adoção de uma linguagem comum, vulgar até, o fato é que as maiores contribuições que a obra trouxe à cultura nacional foram a de libertar o futuro do País das previsões pessimistas até então realizadas e a de inserir o negro no papel de sujeito — em vez de mero objeto — na formação do povo brasileiro, junto ao índio e ao português.
O ensaio procurou resgatar a auto-estima do povo brasileiro, ao analisar a diversidade da formação social como motivo de orgulho e força. Em vez de reservar o destino do Brasil ao subdesenvolvimento, como era lugar comum entre os escritores da época, Gilberto Freyre inovou, ao afirmar o caráter positivo da mistura. Desse modo, libertou-nos das amarras que impediam a expectativa de um Brasil melhor. A obra possui o mérito de procurar redimir os brasileiros do complexo de terem nascido no País, ao tempo em que analisa a influência das raças na formação da sociedade como algo positivo e peculiar do Brasil. O texto, na verdade, é uma apologia à miscigenação e, pela primeira vez, alternou o papel comumente destinado ao negro na literatura de então, elevando-o à condição de protagonista, e não mero espectador dos acontecimentos. Nesse sentido, tais foram as palavras de Freyre: “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo (…) a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e do negro. Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam os nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra”.
Para se compreender o mérito deste majestoso estudo sobre os trópicos, é preciso observar o contexto que precedeu a publicação. Os livros anteriores à Casa-Grande & Senzala revelavam uma extrema melancolia, os autores enfadonhamente repetiam o desastre do destino brasileiro e creditavam a derrota especialmente à miscigenação entre as três raças. Garantiam que o resultado da composição do que acreditavam ser o índio preguiçoso, o negro inferior e o português ignorante não poderia ser diferente do que a criação de um povo mole, lento, subdesenvolvido, incapaz de superar as adversidades e de construir uma nação vigorosa. Retratavam um Brasil miserável, destinado ao subdesenvolvimento e ao fracasso.
Para citar apenas alguns exemplos, podemos começar a situar o contexto anterior à Casa-Grande a partir da publicação de A poesia popular no Brasil, de Sylvio Romero. Um dos fundadores da Escola do Recife e conterrâneo de Tobias Barreto, assim se expressou o sergipano: “É uma vergonha para a ciência do Brasil que nada tenhamos consagrado de nossos trabalhos ao estudo das línguas e das religiões africanas. Quando vemos homens, como Bleek, refugiar-se dezenas e dezenas de anos nos centros da África somente para estudar uma língua e coligir uns mitos, nós, que temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas e a Europa em nossos salões, nada havemos produzido neste sentido! É uma desgraça. Bem como os portugueses estanciaram dois séculos na Índia e nada ali descobriram de extraordinário para a ciência, deixando aos ingleses a glória da revelação do sânscrito e dos livros brahmínicos, tal nós vamos levianamente deixando morrer os nossos negros da Costa como inúteis, e iremos deixar a outros o estudo de tantos dialetos africanos, que se falam em nossas senzalas! O negro não é só uma máquina econômica, ele é antes de tudo um objeto de ciência”.
Ainda no século XIX, José Bonifácio, na obra Projetos para o Brasil, observou os índios como um povo “naturalmente melancólico e apático, estado de que não sai senão por grande efervescência das paixões, ou pela embriaguez; a sua música é lúgubre, e sua dança mais ronceira e imóvel que a do negro”.
E Paulo Prado, em Retratos do Brasil, publicado originariamente em 1928, insurgiu-se contra a consciência de que o País formava um paraíso tropical e de alegria e afirmou ser o Brasil uma das nações mais atrasadas do continente, empestada por vícios, com uma elite despreparada e ignorante. E assim aduziu: “A Colônia, ao iniciar-se o século de sua independência, era um corpo amorfo, de mera vida vegetativa, mantendo-se apenas pelos laços tênues da língua e do culto. População sem nome, exausta pela verminose, pelo impaludismo e pela sífilis, tocando dois ou três quilômetros quadrados a cada indivíduo, sem nenhum ou pouco apego ao solo nutridor; país pobre sem o auxílio humano, ou arruinado pela exploração apressada, tumultuária e incompetente de suas riquezas minerais; cultura agrícola e pastoril limitada e atrasada (…). Indigência intelectual e artística completa, em atraso secular, reflexo apagado da decadência da mãe-pátria; facilidade de decorar e loquacidade derramada, simulando cultura; vida social nula porque não havia sociedade, com as mulheres reclusas como mouras ou turcas; vida monótona e submissa, sem os encantos que a poetizam…”.
Nas páginas finais do livro, arremata: “Dos agrupamentos humanos de mediana importância, o nosso país é talvez o mais atrasado. O Brasil, de fato, não progride: vive e cresce, como cresce uma criança doente, no lento desenvolvimento de um corpo mal organizado (…). A cultura intelectual não existe, ou finge existir em semiletrados mais nocivos do que a peste. Não se publicam livros porque não há leitores, não há leitores porque não há livros. (…). Um vício nacional, porém, impera: o vício da imitação. Tudo é imitação, desde a estrutura política em que procuramos encerrar e comprimir as mais profundas tendências da nossa natureza social, até o falseamento das manifestações espontâneas do nosso gênio criador”.
E ainda há mais. Outros escritos revelaram, ainda, a vontade de por critérios aparentemente científicos procurar comprovar a inferioridade da raça negra. Nesse sentido, J. B. de Sá Oliveira, quando escreveu Craniometria Comparada das Espécies Humanas na Bahia sob o ponto de vista Evolucionista e Médico-legal, em 1895 e ainda o médico legista Nina Rodrigues, com a obra Os Africanos no Brasil, recentemente reeditado, parte do estudo desenvolvido pelo autor entre 1890 a 1905, que se intitulara O Problema da Raça Negra na América Portuguesa.
Em 1932, Homero Pires publicou os manuscritos do médico legista Nina Rodrigues, que havia falecido antes de terminar o livro. Surgiu, assim, a obra Os Africanos no Brasil. Acompanhado de grande interesse nacional, o texto é considerado, até hoje, um dos grandes estudos sobre a influência dos negros na formação do povo brasileiro.
Em sua pesquisa, Nina Rodrigues difundiu a idéia de que a maior desgraça brasileira havia sido a miscigenação das raças, o que debilitara o povo, tornando-o fraco. Considerou que o negro é uma espécie inferior, com propensões genéticas à criminalidade e que a participação deste como elemento étnico do Brasil garantiu-nos posição de extrema desvantagem em comparação com outros países. Não satisfeito, citou ainda o exemplo dos Estados Unidos, onde apesar de também haver negros, a miscigenação não somente era desestimulada, como controlada por parte do Estado. E aduziu: “Se conhecemos homens negros ou de cor de indubitável respeito, não há de obstar esse fato o reconhecimento desta verdade — que até hoje não puderam os Negros se constituir em povos civilizados”. Em outro momento, afirmou: “A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontáveis serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo”. E por fim concluiu: “O que importa ao Brasil determinar é o quanto de inferioridade lhe advém da dificuldade de civilizar-se por parte da população negra (…)”.
A despeito do conteúdo preconceituoso e discriminatório do livro, o prestígio do autor pode ser sentido até hoje, na medida em que sua obra foi reeditada recentemente e seu nome intitula hospital, museu, instituto médico legal, e até uma cidade no Maranhão, dentre outras instituições.
Outro famoso autor da época, Oliveira Vianna, ao publicar Raça e Assimilação, em 1932, acreditava que a miscigenação com o povo africano fora um grande mal para o Brasil, porque enfraquecera o povo brasileiro. Destacou: “Sob o ponto de vista biológico, o estrangeiro, mesmo naturalizado, é sempre um organismo em crise de adaptação (…). Ora, nem sempre o seu organismo tem a plasticidade adaptativa que se refletem nas variações dos índices de morbidade, de mortalidade, de longevidade de cada indivíduo, de cada raça, de cada etnia”. E continuou: “Estes, entretanto, nos chegam, civilizados ou semi-bárbaros (…), carregando usos estranhos, costumes, tradições, modalidades folclóricas de todo o gênero; em suma, formas novas de civilização, que, entrando em conflito entre si ou com a nossa, substituindo-se, superpondo-se ou interdifundindo-se, estão alterando profundamente as camadas tradicionais da nossa sedimentação cultural”.
E é nesse contexto em que se reafirmava a mediocridade do povo, a insipiência das instituições e a fraqueza das relações sociais que surgiu Gilberto Freyre, com uma ousadia de percepção que o tornou praticamente um redescobridor do Brasil.
(Publicado em NoRaceBR)
Alem de linda, redige com maestria. Seu texto foi muito elucidativo, estou lendo Freyre e o seu artigo completou minha leitura acerca dos temas abordados.pelo autor. Positividade a partir do complexo misciginatorio.
Texto de qualidade excelente, revelando o modo como os antigos autores pensavam em relação à miscigenação racial no Brasil. Gostei bastante das citações e da forma que foi redigido. Parabéns.