A fim de combater o “meteoro” de dívidas judiciais que colocou em risco o aumento substancial do Bolsa Família no ano eleitoral, o Ministério da Economia lançou seu míssil: a PEC dos Precatórios. Com sua aprovação, o governo conseguirá uma forma legal de adiar uma parte significativa do pagamento de dívidas, abrindo uma folga no teto de gastos.
A proposta não só possibilitará um maior gasto social como também, dependendo do resultado da votação no Congresso, permitirá algum aumento de salário para servidores públicos e o atendimento de certas emendas parlamentares.
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Riscos à recuperação
“Se o Teto de Gastos for desrespeitado, a dívida brasileira entrará numa trajetória insustentável”, afirma Solange Srour
Em março do ano passado, o governo tentou —sem sucesso— aprovar mudanças nas regras de pagamento dos precatórios, excluindo-os do teto. Naquele momento, a chiadeira do mercado foi grande. O temor do fim do limite de gastos levou a taxa de câmbio para perto de R$ 6, os juros futuros dispararam, e a Bolsa sofreu.
Neste ano, a preocupação parece menor; afinal de contas, a relação dívida/PIB vai terminar o ano bem abaixo do que se temia naquele momento, e a arrecadação tem surpreendido positivamente. Se os indicadores fiscais estão melhores, por que não postergar dívidas?
Os elevados preços das commodities, a alta da inflação e a recuperação da economia têm trazido algum alívio para as contas fiscais —mas são fatores temporários. O enfraquecimento da nossa regra fiscal e o aumento dos gastos obrigatórios são, ao contrário, eventos permanentes.
Adiar o pagamento dos precatórios não retira esses gastos do teto em um horizonte infinito; mas, na prática, isso ocorre ano após ano. Além disso, ao propor um fundo com receitas de privatizações e antecipação de receitas de petróleo para pagar precatórios, a PEC explicitamente os exclui do cálculo do teto.
Há ainda o agravante de o Congresso poder incluir a possibilidade de pagamento de benefícios sociais através desse fundo. Seria o fim do teto de gastos. A PEC pode levar à leniência com o controle dos gastos e incentivar que despesas não judiciais se transformem em precatórios.
O clima de tranquilidade devido ao temporário alívio fiscal também facilita que a proposta de reforma tributária seja vendida como neutra do ponto de vista de impacto na carga tributária, quando, na verdade, ela supõe uma redução de subsídios tributários difíceis de se tornar realidade às vésperas de um ano eleitoral.
Para não deixar o populismo ficar apenas em uma das casas do Congresso, o líder do governo no Senado propõe um super-Refis sem ao menos estimar o impacto nas contas públicas.
Se a paciência do mercado é grande quando a liquidez internacional é ampla, o mesmo não se pode dizer de uma outra variável: a inflação.
Muitos economistas ainda insistem em que a alta da inflação é um fenômeno transitório causado pela alta de commodities, pela quebra das cadeias produtivas e, mais recentemente, pelo retorno das atividades e dos serviços. São explicações válidas, mas não suficientes para justificar por que a inflação está elevada por tanto tempo e bem acima do que a vista na maioria dos países.
O IPCA acumulado em 12 meses ronda 9%. Os núcleos de inflação seguem pressionados, enquanto as expectativas extraídas dos títulos públicos para os anos à frente são bastante superiores às metas. Fatores temporários não deveriam levar a tamanha desancoragem.
Não há dúvidas de que exageramos no estímulo monetário e agora precisamos ser mais tempestivos na subida de juros. No entanto, temos de reconhecer que a política fiscal é tão significativa quanto —e, às vezes, até mais importante do que— a política monetária na determinação da dinâmica da inflação.
Juros extremamente baixos aliados a uma política fiscal sem credibilidade levaram a uma taxa de câmbio mais depreciada, amplificando o impacto de todos os choques inflacionários no Brasil.
A regra do teto de gastos permitiu despesas ilimitadas durante o período do estado de calamidade. Se, de um lado, estivéssemos saindo da pandemia sem ter insistido em subterfúgios para liberar o gasto; e se, de outro lado, o Banco Central não tivesse por tanto tempo encarado o choque inflacionário como temporário, maiores seriam as chances de a inflação e os juros não subirem tanto.
Processos de aceleração da inflação trazem ganhos fiscais de curto prazo. No entanto, esses ganhos são rapidamente exauridos quando usados justamente para minar o compromisso com a sustentabilidade fiscal. O Banco Central não conseguirá conter a inflação sem a âncora fiscal.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 11/08/2021
Foto: Pedro Ladeira