O orçamento público, um fruto da tradição liberal clássica, é seguramente o mais antigo instrumento de que os governos dispõem para organizar seus recursos financeiros, controlar gastos e receitas e executar ações em conformidade com suas prioridades e programas. Em tempos modernos, entretanto, os orçamentos têm extrapolado sua intenção original e incorporado novas finalidades e instrumentalidades alocativas, distributivas e estabilizadoras, passando de simples e indispensáveis ferramentas de controle a intrincados instrumentos impositivos de uma “justiça social” etérea por definição.
O resultado desse avanço dos “engenheiros sociais” tem sido desastroso para o equilíbrio indispensável das contas públicas, não somente no Brasil, mas também em países mais desenvolvidos. Nestes, no entanto, ainda existe certa racionalidade orçamentária, absolutamente inexistente aqui, onde perto de 96% das despesas da União são obrigatórias, o que impõe ao governo federal uma margem de apenas 4% para gastar conforme suas prioridades.
O orçamento federal brasileiro é o mais engessado do mundo, e na maioria dos 27 Estados e 5.578 municípios a situação não é muito diferente. Trata-se de um processo deletério e progressivo de inclusão na Constituição de despesas obrigatórias, transferências, regras de indexação de gastos, obrigatoriedade de aplicação mínima de recursos em alguns setores e criação de receitas vinculadas a determinadas despesas, o que, além de limitar as ações do Executivo, impede a realocação de recursos para o cumprimento de metas fiscais. É uma “bacanal orçamentívora” simplesmente pornográfica, em que os gastos obrigatórios — que incluem Previdência, educação, saúde e folha de pagamento — aumentam continuamente, enquanto os discricionários, aqueles de livre escolha, esmirram a olhos vistos. Só para termos uma ideia, apenas as despesas de custeio para manter o funcionamento da máquina pública correspondem a mais da metade da margem fiscal, e não é preciso enfatizar como é difícil cortar sistemática e sucessivamente gastos com salários, energia elétrica, segurança e limpeza.
A tabela indica a destinação das transferências, em porcentuais, pelas áreas de atuação com maiores despesas, para o ano corrente.
O governo, assim manietado, fica impedido de organizar seus recursos financeiros e executar as escolhas que, seguindo seu programa, normalmente faria. E a arte de governar passa a ser a de conseguir cumprir as ordens e comandos das peças orçamentárias.
Mas ainda há algo mais assustador: a chamada austeridade fiscal só pode ser aplicada aos gastos discricionários, pela impossibilidade de cortes nas despesas engessadas. Pelo andar da carruagem, se nada for feito, a União corre o risco de colapsar, tendo em vista que a margem das despesas discricionárias é cada vez menor e boa parte desses gastos é destinada ao custeio dos ministérios. Em bom português: se antes da pandemia já havia risco de faltar dinheiro até para o dia a dia da máquina pública, com as enormes pressões políticas para o abandono do teto de gastos (estabelecido pela Emenda Constitucional nº 95, de 15/12/2016) que ela acendeu, o alerta adquire tom de desespero.
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Uma reforma liberal para o Judiciário
Carimbando o que escrevemos, o projeto da Lei Orçamentária Anual de 2021, enviado pelo governo ao Congresso no fim de agosto, prevê quedas nas despesas discricionárias nas duas áreas em que tradicionalmente mais o Estado gasta, a saber, a saúde (-12,13%) e a educação (-8,61%), comparativamente a 2020. No entanto, quando se considera o orçamento geral (despesas obrigatórias + despesas discricionárias), ambas as áreas apresentam pequenos aumentos na previsão para 2021. Ao mesmo tempo, as despesas que não são objeto de limitação de empenho, nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal, por se constituírem em obrigações constitucionais e legais da União, atingem o número farto e pródigo de 64 (sessenta e quatro)!
Economistas de boa formação vêm alertando, há pelo menos três décadas, sobre os problemas sérios causados por esse engessamento orçamentário descomunal e chamando a atenção para as enormes dificuldades que acarreta para a tão necessária faxina no setor público. Essa faxina teria o propósito de mudar o regime fiscal cronicamente deficitário, de maneira que se reduzissem permanentemente os gastos da União, dos Estados e dos municípios e se racionalizasse o sistema tributário. Enquanto prevalecer a irracionalidade desses comprometimentos compulsórios de recursos, o máximo que uma equipe econômica verdadeiramente liberal poderá conseguir será a aprovação de meros ajustes fiscais de curto prazo — que alguns governos até tentaram fazer e logo foram engolidos e deglutidos pelo tempo. Reformas estruturais profundas? Esquece.
Por essas e outras é que, apesar de a necessidade de emagrecer e clarear as estruturas gordas e obscuras do Leviatã ser óbvia e consensual — só mesmo economistas com parafusos frouxos na cabeça, os ditos ultraprogressistas, ainda têm a cara de pau de negar sua urgência —, e não obstante a vitória nas urnas, na esfera federal, de um programa marcadamente liberal, pouco avançamos. Estamos quase na metade do mandato presidencial, com o mesmo ministro da Economia, mas os progressos obtidos foram bastante tímidos em relação ao que os eleitores, a equipe econômica e, talvez, o próprio presidente esperavam. É verdade que demos alguns passos da direção correta, mas os cortes de despesas públicas continuam resistindo com valentia, poucas empresas estatais foram privatizadas, a reforma da Previdência que os políticos deixaram vingar foi bem acanhada, a tributária, jogada para a frente, a administrativa está empacada etc.
Além do brutal engessamento orçamentário, há outros óbices à execução do que, afinal, é um consenso. Aqui estão dois deles: o primeiro é o patrimonialismo, velha praga enraizada em nossa cultura, que consiste na criminosa e deliberada ausência de distinções entre os limites do público e do privado, em que políticos e outros grupos de interesses se sentem donos de toda a sociedade e, portanto, dos orçamentos dos três poderes em todos os níveis de governo. E o segundo, de natureza mitológica, é a seita de adoradores fanáticos do Estado onipotente e interventor, que lhe prestam culto em um misto de lendas pseudodesenvolvimentistas, ideologia, ignorância, ingenuidade e, principalmente, interesses políticos e corporativos. A influência ideológica já foi maior, mas ainda é muito forte na mídia, nas escolas, nas universidades e nos meios ditos culturais, em que austeridade fiscal e desestatizações praticamente são tipificadas como crimes hediondos.
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Costuma-se dizer, ao descer uma ladeira, que “para baixo todos os santos ajudam”. No entanto, quando se trata de cortar gastos públicos, de empurrá-los para baixo, os santos, talvez diante da infinidade dos pecados de políticos de que tomam conhecimento, sabiamente recusam-se a ajudar e se afastam à sorrelfa, envergonhados. Para usar o dialeto dos economistas, gastos públicos são “inelásticos” para baixo: qualquer que seja a intenção de presidentes, ministros, governadores e prefeitos de cortá-los, eles se recusam estoicamente a cair.
Fonte: “Revista Oeste”, 16/10/2020
Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil