A morte do músico Evaldo Rosa do Santos, 46, está longe de ser um incidente, um lamentável erro de um pequeno grupo de militares jovens e despreparados que, dominados pelo medo e forte emoção, dispararam nada menos que 80 tiros contra o veículo que transportava sua família. Ela é fruto de décadas de descaso com a segurança pública e, no dizer do escritor Mia Couto, também “a manifestação de uma outra lei que se quer fazer à margem de toda a lei”.
A morte de civis pelas forças de segurança do Estado brasileiro tem sido uma prática sistemática ao longo da nossa história. Durante o regime militar, foi uma política de Estado, que levou à execução, à tortura e ao desaparecimento de centenas de dissidentes, como demonstrado pela Comissão Nacional da Verdade. A Lei de Anistia, de 1979, permitiu que militares e civis envolvidos na repressão e na prática de crimes contra a humanidade se evadissem de suas responsabilidades.
Nas últimas décadas, foram milhares as pessoas mortas em confrontos com alguns setores das polícias que passaram a funcionar à margem da lei. Apenas em 2017, mais de 5.100 pessoas, em especial jovens negros que habitam nossas periferias, perderam a vida em embates com órgãos de segurança; isso sem falar nas incontáveis mortes provocadas por milícias e esquadrões da morte, que funcionam com a omissão ou conivência do Estado.
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A violência de Estado não pode ser analisada fora do contexto de uma criminalidade cada vez mais audaz e violenta, em que emergimos. Em grande medida, a violência do Estado é uma consequência da própria incapacidade deste de cumprir a função fundamental de garantir o direito à vida dos cidadãos. Para superar sua própria incompetência, muitas autoridades não apenas toleram, mas também incentivam o uso arbitrário da força por parte das polícias, chegando a premiar e condecorar matadores.
Essa política inconsequente, levada a cabo por décadas de lideranças populistas adeptas do “bandido bom é bandido morto”, e fortemente reiterada nos dias de hoje, em nada contribui para a redução da criminalidade e a proteção do direito à vida, à liberdade de locomoção e mesmo à propriedade dos brasileiros. Ao arrastar as Forças Armadas para o combate à criminalidade, para o qual não foram concebidas ou treinadas, os políticos apenas dão mais uma última cartada “inócua” na guerra contra o crime, como sugeriu o general Villas Bôas.
Os dados são dramáticos. Foram mais de 1 milhão de pessoas mortas nos últimos 20 anos. O grande número de policiais mortos, em sua maioria fora de serviço –decorrente dos baixos salários–, também aponta para o descaso das lideranças políticas para com esses profissionais.
Se quisermos levar a segurança e os direitos a sério é necessário abandonar as bravatas, que não salvam a vida de ninguém. Nossos governantes deveriam se dedicar a modernizar, profissionalizar e reformar as polícias. É urgente promover uma profunda reforma no sistema de Justiça criminal, que reduza sua seletividade e a impunidade. Também é necessário repensar o sistema penitenciário, para que ele deixe de ser o principal mecanismo de cooptação e treinamento do crime organizado. Por fim, é indispensável combater a corrupção e a violência do sistema criminal que, em última instância, eliminam as fronteiras entre os agentes da lei e do crime.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 13/04/2019