ComuniUma lição “amarga” que a crise da covid-19 já deixou em relação à política econômica brasileira é que os “velhos problemas” continuam aí, diz o economista Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central (BC) e sócio da gestora Rio Bravo Investimentos.
Ao mexer com a noção de tempo, a pandemia “criou uma imensa metáfora da procrastinação” brasileira, sempre deixando para depois as reformas necessárias para deslanchar o desenvolvimento econômico, explica Franco.
A reflexão faz parte do novo livro do economista, Lições Amargas (História Real, selo da editora Intrínseca), que chega às livrarias no próximo dia 26, tomando a crise de 2020 como ponto de partida para tratar temas como reformas, tamanho do Estado e privatização.
A pandemia “não resolveu grandes guerras ideológicas e controvérsias” sobre a política econômica e, assim, o Brasil continua “encalhado no mesmo banco de areia de antes”, após “quatro décadas perdidas”, diz Franco. A seguir, os principais trechos da entrevista.
No livro, o sr. escreve que parece que 2020 não terminou. Quando a economia brasileira deixará a pandemia para trás?
A observação do livro tem a ver com as noções de tempo que a pandemia destruiu em todos nós. Não apenas do tempo vago, que cada um de nós fica no computador, em casa, confinado, uma espécie de tempo roubado. Cada um de nós achava que ia demorar menos o sacrifício do confinamento. Isso criou uma imensa metáfora da procrastinação que tem sido o Brasil nos últimos anos. Toda essa fase de reformas e consertos do Brasil era para já ter acabado, mas, não, continua a encrenca. Essa sensação de tempo desperdiçado, esticado, permite dizer que 2020 virou uma década perdida. E 2021 não começou ainda, vai começar em 2025.
Qual a principal lição amarga da pandemia?
É o desconforto de perceber que essa procrastinação permanente do nosso destino de glórias vai continuar. Os velhos temas continuam todos aí. A grande lição amarga é que nada foi resolvido com a pandemia. Tudo continua como estava. A pandemia não resolveu as grandes guerras ideológicas e controvérsias. Continuamos, portanto, encalhados, no mesmo banco de areia de antes.
O Brasil continuará sendo o país do futuro que nunca chega?
Já era visível, antes da pandemia, que estávamos terminando a quarta década perdida em matéria de crescimento. Falamos de década perdida nos anos 80 do século passado, mas, desde então, não tivemos nenhuma década que não fosse perdida. Estamos caminhando para trás, por causa dessa nossa indecisão crônica. As possibilidades (de desenvolvimento) continuam aí, mas a nossa incapacidade de executar as reformas que efetivamente promovam prosperidade econômica só fez se acentuar com o tempo.
Como reformar a ideia de reforma, como o sr. propõe no livro?
A ideia de reforma ocupa hoje no imaginário brasileiro o lugar que, antigamente, ocupava aquela noção mítica de desenvolvimento. Ninguém sabe o que são direito as reformas, mas, quando vierem, tudo será resolvido. Parece que tudo se resolve quando essa agenda chegar ao parlamento, e o parlamento, por bom senso, decidir aprovar. Só que não é assim. Essa mitologia vem lá de trás, da época dos choques econômicos, do Plano Real, após a queda do Muro (de Berlim, em 1989, que marcou o fim do socialismo no Leste Europeu).
A mitologia sugeria que coisas mágicas iam instaurar uma economia de mercado no mundo comunista ou aqui. Ocorre que, passadas as quatro décadas perdidas, não é bem assim. Não apenas é muito difícil passar esse tipo de reforma, como nem sei se elas existem. Podemos pegar qualquer uma das reformas e começar quebrá-la em pequenas coisas que têm que acontecer todo dia. Precisa crescer a produtividade, isso é um esforço de todo dia, não é uma reforma que vai resolver. É outro conceito, um tanto diferente da noção de que vai haver uma solução mágica para resolver o nosso problema.
Quebrar as reformas em pequenas coisas pode ser uma estratégia de governo?
Algumas coisas aprendemos com a pandemia. Uma delas é que não tem remédio mágico. A economia está cheia de cloroquinas e propostas mágicas. Há uma boa vontade inacreditável com abordagens não científicas para os assuntos da economia. Tudo é creditado à diversidade das ideias. Só que o que funciona é a “medicina tradicional” (da economia). Precisamos de uma pandemia para adquirir essa crença? Ideal seria que não. No mundo da economia, alguma coisa pode mudar para melhor com essa experiência sobre a ineficácia da mágica para resolver os problemas.
Há chance de essa lição ser aplicada ainda no atual governo?
Possível é, mas será fortuito. O presidente não é o Paulo Guedes, o presidente é Jair Bolsonaro. O que for proposto ao Congresso Nacional será já uma matéria que é meio caminho entre o presidente e o ministro. E ainda vai, no Congresso, sofrer as negociações que são próprias do parlamento. Pode acontecer qualquer coisa, inclusive aprovar coisas muito interessantes. Recentemente, por exemplo, aprovamos o marco do saneamento.
Quer dizer, algumas reformas importantíssimas acabam acontecendo quando as pessoas estão distraídas fazendo outros planos. Não é que o presidente esteja convencido daquilo. As coisas acontecem porque tem muitas pessoas envolvidas no esforço e, a menos que alguém crie algum obstáculo, vão acontecendo. Mas tem risco de dar errado.
Quando a política está focada nos objetivos corretos na economia, os riscos são maiores de acertar. Não é o que temos agora. Temos a pandemia ainda em operação, e um governo muito dividido sobre o que fazer. Sem contar as encrencas que o governo arruma com a oposição, com o resto do País. É difícil ser otimista com o governo, mesmo para os otimistas com o Brasil, como eu.
Qual a lição da pandemia para a responsabilidade fiscal?
A responsabilidade fiscal é comparável, em importância, à defesa do meio ambiente. Se ocorre uma urgência, como uma guerra ou uma pandemia, não significa que, agora, não importa mais a responsabilidade fiscal, ou a defesa do meio ambiente, porque agora temos que combater a pandemia a qualquer custo. Uma urgência não significa que você tenha que abrir mão de todos seus outros valores permanentes importantes.
Outros países que lutaram guerras tiveram que encontrar equações de financiamento para a guerra consistentes com a responsabilidade fiscal, com a sustentabilidade financeira do país a médio prazo. É uma tolice completa dizer que isso não é importante. É o mesmo que dizer que o meio ambiente não é importante. Antes da pandemia, tínhamos a pobreza no Brasil, que é uma urgência também.
Para enfrentar essa urgência, não é preciso abrir mão de defesa do meio ambiente, estabilidade de preços, responsabilidade fiscal, valores também importantes, como a democracia. Não é porque temos uma pandemia que precisamos abrir mão da democracia. O cálculo (das contas públicas) é sempre limitado, e várias coisas precisam ser atendidas ao mesmo tempo. Elegemos pessoas competentes para fazerem escolhas difíceis, em nome das pessoas que as elegeram.
Mesmo com a pandemia, é preciso fazer as contas do orçamento?
Não precisamos fazer contas porque gostamos de matemática. Essas contas apenas servem para sabermos os limites, onde está o precipício. É bom saber onde está o precipício, se não, pisamos ali, caímos e nos machucamos. É por isso que precisamos fazer contas. Não é por gosto, é por precisão.
Seria ótimo que pudéssemos fazer um programa permanente de auxílio, não mais emergencial, mas rotineiro, de R$ 800 por cabeça. Por que não? Se é uma questão de generosidade, sem fazer conta, quanto mais, melhor. Só que não. A prática acaba impondo limites aos governantes, e eles acabam, de um jeito ou de outro, dimensionando seus programas sociais ao que é possível fazer.
Políticos não podem remover as barreiras por sua vontade. Se fosse assim, a vida seria mais fácil. Por isso a pandemia é um desafio extraordinário, tanto para nós aqui quanto para qualquer país. Todos neste planeta enfrentamos uma dificuldade desse tipo, proporcional a cada um.
Guardadas essas proporções, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, parece estar dando um passo além com o pacote de medidas do governo, não?
Eles estão, como muitos outros países, experimentando. O remédio de 2008 funcionou e, desta vez, está sendo experimentado numa dosagem muito maior. Se vai funcionar, ou não, vamos assistir. Tem muito jogo pela frente.
Por ora, inclusive, a política econômica americana traz benefícios para o Brasil. Inflacionária ou não, puxou os preços das commodities (matérias-primas negociadas internacionalmente, muitas delas produzidas pelo Brasil) para cima, criou um impulso positivo para a economia americana, que nos ajuda. Se der certo, lá dentro dos Estados Unidos, nos seus próprios termos, será uma inovação.
A segunda pergunta é: o que os Estados Unidos são capazes de fazer, diante das possibilidades que têm, pode ser reproduzido aqui no Brasil? Nós podemos fazer como eles? Nós, que não temos moeda internacional de reserva, podemos emitir tanta dívida assim? Por ora, trata-se “apenas” da potência econômica global, que emite a moeda internacional de reservas, tentando tirar o máximo de proveito dessa situação em sua política fiscal. O quanto isso é transferível para outros países, vamos ver. Acho que é muito pouco.
O programa federal de concessões ao setor privado parece estar andando. Qual a lição disso?
As concessões avançam, às vezes, numa direção imprevista, e encrencam em outra. Quando se trata de privatizar os Correios, encrencou. Aí é uma corporação, com um sindicato poderosíssimo. Infelizmente, o mesmo governo que faz (as condições para conceder os serviços da) a Cedae (a estatal de saneamento do Rio), que foi um sucesso, é incapaz de privatizar a empresa do trem-bala (a Empresa de Planejamento e Logística, EPL, estatal criada nos governos do PT para coordenar projetos de infraestrutura).
O programa de concessões é um dos casos em que está sendo feita a reforma da ideia de reforma. Só por que não tem o nome de privatização, a boa vontade política é completamente diferente. Isso é privatização, é aumento da importância do setor privado em atividades onde o setor público não consegue ter bom desempenho, mas, se chamarmos de privatização, vai encrencar. É uma lição importante: muda o nome!
Alguns economistas defendem ampliar os investimentos públicos para impulsionar a retomada pós-pandemia. É possível?
A ideia de que vai ter dinheiro para fazer investimento público para a retomada no Brasil é uma fantasia total. Na prática, não tem mais dinheiro para fazer investimento público de forma relevante. E, ao mesmo tempo, relatórios do TCU (Tribunal de Contas da União) dizem que mais de um terço das obras públicas estão paradas por vícios na contratação e execução. Ou seja, além de faltar dinheiro, a capacidade de executar está seriamente comprometida.
É como diz uma frase do livro: nem (John M.) Keynes (economista britânico que formulou importantes teorias econômicas na primeira metade do século XX, frequentemente associado à defesa da ampliação dos investimentos públicos como forma de impulsionar a demanda) seria keynesiano num país assim.
Os juros baixos vieram para ficar ou a alta recente da inflação atrapalha?
O livro traz um olhar de longo prazo, comparando taxas nominais e reais que tínhamos na época da hiperinflação, nos anos 90 do século passado, e a trajetória durante todos esses anos. Tivemos uma bela pancada para baixo com o Plano Real. Ainda que os juros reais (a taxa após a inflação ser descontada) tivessem ficado bem altos nos primeiros anos do plano, depois caíram.
Os juros hoje estão em patamares civilizados, como nunca tivemos. Fomos sempre um país de juros altíssimos, por variadas razões. Isso mudou, porque ao longo de todos esses anos temos atacado o problema dos juros elevados, que tem muito que ver com dívida pública e finanças públicas. As questões do curto prazo, mais conjunturais, não vão interferir com essa tendência maior, de longo prazo, que nos colocou muito firmemente no terreno do juro de um dígito. Difícil achar alguém hoje em dia que faça algum prognóstico de juros de dois dígitos.
O desequilíbrio das contas do governo não ameaça o juro baixo?
O próprio BC diz, na comunicação através das atas, que, se o governo não resolver o assunto fiscal, vai ter que subir os juros. A advertência é muito clara. Isso é compreendido na esfera política de forma muito mais clara do que no passado. Tanto que, hoje, muitos economistas, observadores, jornalistas especializados, todos dizem aos políticos: sendo irresponsáveis, vocês farão subir os juros, não é maldade do BC, é a irresponsabilidade dos políticos. Eles se sentem, pela primeira vez, responsáveis por uma coisa que eles achavam que pertencia ao BC.
Fonte: Estado de São Paulo (21/05/2021)
Foto: Marcos Arcoverde/Estadão