O juiz Sérgio Moro, aplaudido e criticado porque pôs na prisão uma quadrilha no poder, é um herói, mas não é uma estrela. Porque a estrela é a lei, que deve valer para pobres e ricos, famintos e gordinhos, doentes e sãos, honestos e desonestos, poderosos e comuns.
Pois a lei só é autentica se vale também para quem não tem boa ou má-fé, dinheiro, poder, influência e prestígio. Sua lógica é implacável, e seu alvo é o delito, e não apenas a pessoa. A Justiça razoável é o processo de adequação entre o crime, o delinquente e as suas circunstâncias.
Aí reside a sua universalidade, a qual se aplica até mesmo a quem a promulgou. Até mesmo Deus está — e eu digo isso com abalo —, Ele próprio, submetido à sua Lei.
Não é, pois, por acaso que a imagem da lei tem os olhos vendados, mas não é cega. A venda simboliza a determinação de não distinguir quem deve ser pesado na sua balança‚ cuja neutralidade, porém, é visível. A venda remete ao ideal de igualdade, e a espada simula a penalidade que, obrigatoriamente, fecha o ciclo iniciado com o rompimento da norma.
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Vendo a nossa crescente familiaridade com os processos legais, e ainda um tanto bestificado pela prisão de alguns poderosos enquanto aguardo (com uma imensa incerteza) a de outros tantos, é impossível não comparar minhas experiências com a lei nas diversas sociedades nas quais vivi.
Entre os apinayé (uma humanidade sem escrita), seria impossível separar lei do costume, sempre muito mais abraçado do que contestado. Nessas sociedades fiéis a si mesmas, como diz Lévi-Strauss, vive-se sem a distinção marcante entre o individual e o coletivo, e o revolucionismo tão habitual no Leblon é impossível. Além disso, a dinâmica social é ativada pela reciprocidade de modo que mais vale dar e distribuir do que receber e guardar. Ali eu não vi prisões e não descobri criminosos ou pervertidos.
Nos Estados Unidos, experimentei uma outra vivência da norma. Em South Bend, Indiana, vivi nos anos 80 uma experiência drástica com a lei local. Numa noite de verão, soube que meus filhos haviam sido presos quando, em estado de razoável influência do mero álcool, saíam de um estádio de beisebol após um jogo. Um membro do grupo tentou deixar o estádio por uma dada passagem, mas foi barrado por policial à paisana. O grupo indagou o que havia ocorrido, e meu filho Renato cometeu uma falta mortal: tocou com a mão, num gesto brasileiro, o ombro do policial, foi empurrado, empurrou de volta e, por isso, foi algemado. A agitação pública levou o grupo para a cadeia.
No xadrez da cidade, situado ao lado da prefeitura, um tranquilo sargento nos recebeu no melhor estilo dos filmes de Frank Capra, dissipando as fantasias de violência e tortura do pai. O guarda perguntou os nomes, confirmou-os, cobrou a respectiva fiança — imediatamente paga em dinheiro — e, depois de uma explicação-admoestação em tom sereno que eles estavam de quarentena por três meses, pois caso repetissem o mesmo delito seriam enjaulados por mais tempo, fomos todos para casa. Ninguém perguntou quem era quem, e não houve nenhuma juridicidade barata ou papelada.
No dia seguinte, comentei envergonhado o ocorrido com alguns colegas de universidade. Foi quando descobri que todos haviam passado por experiências semelhantes. Lá, a polícia não era chamada e nem era um corpo exótico ou uma sentença final. Era simplesmente parte e parceira de uma sociedade na qual todos podiam cometer delitos sabendo que a polícia estava ao seu lado — para protegê-los ou puni-los.
Confesso que a generalidade da experiência de lidar com a polícia e a prisão foi, para mim, mais surpreendente do que o fato, até então dramático, de ver meus filhos presos.
Em dezembro de 1969, na véspera de voltar ao Brasil e ao Museu Nacional, depois de concluir meus estudos em Harvard, fui detido por um carro de polícia em Somerville, uma cidade vizinha de Cambridge, Massachusetts, a cerca de dois quarteirões da vila onde morava. Eu havia vendido meu primeiro carro, um velho Fusca, para um vizinho e, por isso, não paguei a renovação da licença. Depois de um belo jantar, a polícia me perseguiu e me obrigou a parar.
Saindo do carro, o policial perguntou por que eu não tinha licenciado o meu automóvel. Mentirosamente, respondi que ignorava tal obrigação. O policial olhou meus documentos e, vendo que eu era aluno de Harvard, disse sério: “Você é de Harvard. É muito esperto para não sabe dessa regra”. E falou algo que jamais esqueci: “Não minta! Se você continuar mentindo, a multa poder ser de 1.500 dólares!” (era tudo que havíamos economizado…). Aceitei o conselho, falei a verdade, ouvi uma espinafração e fui liberado.
Aquelas experiências me abriram ao seguinte: nas democracias, quanto mais você sabe, quanto mais você tem, quanto mais você é poderoso, maior é o seu dever de falar a verdade e de seguir a lei. Prestígio, riqueza, influência e poder não desobrigam — muito pelo contrário — obrigam.
PS: Lavar a Lava-Jato seria a maior sujeira da nossa história política!
Fonte: “O Globo”, 01/11/2017.
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