Não há quem não tenha lutado com algum papel. Para muitos foi duro ser pai ou marido e foi mais complicado ainda ser democrata. Entre o papel e a pessoa há sempre um fosso e o seu preenchimento requer o entendimento do “axioma de Shakespeare”. A observação segundo a qual o mundo é um palco e todos nós, homens e mulheres, somos meros atores. Todos temos nossas saídas e entradas e desempenhamos muitos papéis.
Papéis são fórmulas. Impossível rir num enterro ou ficar triste num baile de carnaval. Neste primeiro dia do ano, assisti à “posse” de Dilma Rousseff no cargo de presidente da República. A passagem da faixa presidencial foi, como tudo no Brasil, o fim de um processo gradual, iniciado com a diplomação pelo TSE e, dias depois, com a assinatura do livro de posse do cargo no Congresso. Dilma é a primeira mulher presidente do Brasil, mas ela assume o cargo sem nenhuma turbulência, inventada e abençoada que foi pelo carisma bem propagado do presidente Lula, que sai deixando a nova administração sob o signo da continuidade.
Inevitável observar essas transições que têm tantas consequências para as nossas vidas porque, afinal de contas, há teatro no poder, mas o poder não é teatro. Nas democracias, separar pessoas e papéis é algo fundamental, senão o seu fundamento. Nelas, não cabem os movimentos “fora X, Y ou Z” quando alguém é eleito para ocupar o papel de “supremo mandatário da nação”, como diz a nossa autoritária fórmula cultural. Você pode ser contra um partido ou uma pessoa, mas não pode torcer contra a Presidência ou contra o seu país.
Há papéis universais, como o de cidadão, pedestre, comprador, viajante, eleitor, etc… – e papéis especiais. Quanto mais importante, mais difícil e desejado é o papel. Há papéis que enriquecem, há os que marginalizam e os que notabilizam, como o de artista ou de escritor premiado. Há os superexclusivos, a serem ocupados por uma só pessoa que, por isso mesmo, encerram biografias, como os de papa, rei e presidente da república. Sem esquecer o de dita(dor)! Sua exclusividade é uma medida óbvia do seu poder de construir&destruir, daí a sua onipotência – a ser, se há bom senso – necessariamente controlada. Nos países de índole hierárquica que amam privilégios e o Estado serve para aristocratizar os membros do poder, esse cargo é incensado e a onipotência do papel contamina o seu ocupante. Uma imprensa livre e desinibida é o remédio contra essa dose de divindade e por isso ela é tão odiada quando uma pessoa se apossa da Presidência.
Papéis exclusivos fecham biografias e obrigam a um abandono do mundo, conforme viram Max Weber e Louis Dumont. Ler certas vidas como exemplos de renúncia do mundo, conforme sugeri faz tempo, ajuda a compreender tipos como Antonio Conselheiro, Pedro Malasartes, Lampião, Leonardo Filho, Jânio Quadros, Getúlio Vargas e outros. Figuras reais e imaginárias filiadas à corrente dos que por alguma tragédia, convicção ou decepção foram obrigadas a sair do mundo em que viviam.
Dir-se-ia que o papel de presidente da república situa a pessoa no centro. Mas é justamente no centro onde jaz a maior solidão e as mais tenebrosas tentações. Como sabem as “celebridades”, alguns papéis devoram seus ocupantes. No topo, qualquer movimento leva à planície. Por isso, as sociedades arcaicas cercavam a realeza com cargos dados ao nascer e perdidos ao morrer. No caso das democracias modernas, temos uma situação curiosa. O papel de presidente é perpétuo e todo-poderoso; mas a pessoa é, pela teoria, um cidadão falível e mortal. Sabe-se que o Congresso americano discutiu se o primeiro presidente do país, George Washington, deveria ser tratado como “Vossa Majestade” ou “Senhor”. Ficaram, coerentemente, com a segunda fórmula. O resultado desse dilema entre um papel que transforma e a pessoa que a ele sobrevive é a idealização e o endeusamento dos que, num mundo de cidadãos, são elevados por tais cargos.
A percepção do limite da pessoa no papel e do papel na pessoa é uma arte. Ser o n.º 1 de um país, tendo – como no caso do Brasil – todos aqueles puxa-sacos, mordomos, assessores, asseclas, aliados, secretários e empregados; poder gastar e usufruir tudo secreta ou abertamente; estar sujeito ao aval de sua própria ética porque entre nós a Presidência foi moldada numa cultura monárquica jamais discutida ou erradicada, é algo que poucos podem realizar com bom senso e honestidade. Por isso Lula falou em “desencarnar” do papel. Pois nele permanecer seria patológico e inviável. Até onde ele vai realizar isso, aceitando o tenebroso “ex” (há algo mais patético do que um ex-marido?), veremos. E até onde Dilma Rousseff vai nele se adaptar, será visto nos próximos quatro anos. A ambos o cronista deseja sucesso, pois como um encarnado antropólogo cultural que sabe de duas ou três coisas sobre a vida coletiva, ele compreende como deve ser duro sair e entrar de um papel que canibaliza, esgota e coage a ponto da tortura. Um cargo que obriga a ser presciente quando todos em volta nada sabem; que determina cautela quando não se tem tempo para decidir e inovação quando os hábitos exigem as velhas fórmulas; que determina impessoalidade num universo marcado pela ética da condescendência; que manda acreditar quando não se acredita. Um papel, enfim, eventualmente assassino, que pode crucificar o seu ocupante. Tal como ocorria com os messias, os profetas ou os velhos feiticeiros e hereges, que eram queimados vivos nas fogueiras.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 05/01/2011
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