Quem estava preocupado com a inflação pode ficar tranquilo. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, fez o esclarecimento que se espera de uma autoridade responsável num momento como este. Diante da notícia de que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo tinha ultrapassado o teto da meta – batendo em 6,51% ao ano em abril, contra o teto de 6,5% –, Mantega explicou que não é nada disso. Segundo o ministro, a aferição da meta não considera a segunda casa depois da vírgula. Estamos salvos.
Seria realmente um desastre se a contabilidade governamental tivesse olhos para aquele algarismo petulante que se colocou, sorrateiramente, à direita do 5. Ainda bem que o Banco Central – segundo Mantega – não enxerga tão longe. É mais prudente. Como se sabe, não existe pecado do lado de baixo do Equador, nem na segunda casa à direita da vírgula. Essa casa deve ser aquela da mãe joana, onde acontecem coisas às quais não convêm à família brasileira assistir.
A segunda casa depois da vírgula tem o teto furado pela subida obscena da inflação. Melhor olhar só para a primeira casa, onde a moral e os bons costumes monetários estão intactos. Ali não se veem a orgia dos gastos públicos no governo popular, a farra do crédito populista e os subsídios mascarados do Tesouro jorrando dinheiro na praça e fustigando a inflação. Essas cenas explícitas de administração perdulária só são visíveis para quem espiar pela fresta da segunda casa depois da vírgula.
Quem insistir em bisbilhotar a festinha de embalo governamental que rola ali, depois não venha reclamar que as cenas são fortes. De sua posição impoluta de zero à esquerda, o ministro avisou que não é para olhar.
Para os que ainda não ficaram tranquilos com o esclarecimento de Mantega, nem tudo está perdido. O governo Dilma acaba de sacar da manga outro dispositivo mortal contra a inflação. Com a simplicidade que caracteriza a literatura petista, o povo foi informado de que os vilões da escalada dos preços são os combustíveis (e, em segundo plano, os alimentos, vá lá). Não olhe para os outros itens encarecendo a sua volta, não estrague o encanto. E continue, claro, com os olhos bem fechados para a festinha das verbas públicas na casa ao lado. O inimigo está nas bombas de gasolina.
E já está sendo fuzilado. Numa operação espetacular liderada pelo ministro de Minas e Energia, Edison Lobão – vá calculando a complexidade –, as distribuidoras BR foram intimadas a derrubar os preços da gasolina e do etanol.
O Brasil é mesmo surpreendente. Depois de toda a engenharia do Plano Real, quem poderia imaginar que, um dia, Edison Lobão estaria na vanguarda do combate à inflação? Não pode haver nada mais tranquilizador do que ter o pródigo afilhado de José Sarney, símbolo da moderna gestão pública, como ponta de lança da política monetária nacional.
É claro que para colocar Lobão na cara do gol, com a bala de prata contra a inflação, foi preciso alguma mágica. Segundo o ministro Mantega, se abatidos os índices dos combustíveis e dos alimentos, a inflação voltaria a rondar o centro da meta (4,5%). É uma conta fajuta, que nenhum economista sério chancelaria. Mas como numerologia funciona bem – especialmente num país que não tem oposição para ficar prestando atenção nesses detalhes.
Em recente congresso do PMDB, José Sarney, padrinho de Lobão, afirmou que a mídia enfraquece os políticos. Realmente, os jornalistas têm essa mania de implicar com os números cabalísticos das autoridades. Os mais inconvenientes são capazes até de querer olhar para a segunda casa depois da vírgula. Talvez o mais seguro seja seguir o exemplo do governo argentino, que adestrou o IBGE de lá. Aí não tem mais problema: em todas as casas antes e depois da vírgula, os números da inflação sempre obedecem ao dono.
Fonte: revista “Época”
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