Brasil continuará injusto, desigual e pobre enquanto não for eliminada a relação senhor-escravo entre o Estado e seus cidadãos.
O Brasil tinha arrecadado até este domingo, quando ainda estamos na metade do mês de fevereiro, cerca de R$ 370 bilhões em impostos federais, estaduais e municipais. Até o fim do ano, se não aparecer por aí nenhum fenômeno sobrenatural, o brasileiro terá tirado do seu bolso e entregue ao Tesouro Nacional entre R$ 3 trilhões e R$ 3,5 trilhões – não muito longe de R$ 1 trilhão, o que, por qualquer critério a se considerar, já é dinheiro de cachorro grande. São R$ 5 milhões por minuto, caso você queira ver a coisa com algarismos mais compreensíveis que os bilhões e trilhões. Que tal?
Os números são da Associação Comercial de São Paulo, que faz estes cálculos há 15 anos, em tempo real, e exibe as contas num relógio exposto ao público, sem ter sido contestada até agora sobre a sua exatidão. Ninguém tira tanto dinheiro assim da sociedade brasileira – nem a indústria, nem o comércio, nem os bancos, nem as multinacionais, nem os monopólios, nem os mais sórdidos bilionários que vivem entre o Oiapoque e o Chuí. Ninguém.
Muito bem: se é o Estado o ente que recolhe para si a maior parte de toda a riqueza criada no País, talvez se pudesse perguntar, apenas perguntar, sem ofender ninguém, se ele, Estado, não teria alguma coisa a ver com o problema da concentração de renda no Brasil.
Se a máquina pública embolsa mais de R$ 3 trilhões num ano, e faz o cidadão trabalhar, em média, mais de 150 dias em 12 meses só para pagar impostos, e passa o tempo inteiro dizendo que “não sobra dinheiro para nada”, é o caso de se dizer: “Espera um pouco”. Se o responsável direto, e principal, pela péssima distribuição de riquezas no País não é quem arranca aquela montanha de dinheiro dos 200 milhões de brasileiros e devolve tão pouco a eles, quem seria, então? Não são os marcianos. Não são as empresas. Não são os ricos. Não são nem os ladrões do erário – pois, por mais que roubem, têm de se contentar com dois ou três bilhões aqui, outros tantos ali. Nem arranha a monstruosidade que o Estado está consumindo consigo próprio.
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Vá alguém dizer, porém, que a grande concentradora de renda no Brasil – e, por consequência, a campeã na criação da desigualdade, da injustiça e da pobreza – é a máquina do Estado. Pelo menos três quartos dos economistas, e analistas, e especialistas, e cientistas políticos e comentaristas de mesa-redonda etc. vão cair em cima matando. A culpa de tudo, para eles, é o “1% mais rico” da população. Ou, então, da ausência de um imposto sobre “as grandes fortunas”. Ou da alíquota baixa demais do imposto sobre as heranças. Ou do “excesso de lucros”. Ou do fim da CPMF – ou de qualquer dessas coisas que vivem dizendo no Congresso, no Ministério e em outros ambientes do mesmo gênero.
Impostos sobre patrimônio e herança podem, sem dúvida, ser criados e aumentados – até para se alinharem com as melhores práticas fiscais em vigor no mundo desenvolvido. Mas o que isso vai mudar no conjunto da concentração de renda e da desigualdade no País? Não vai mudar nada.
O dinheiro tirado a mais com esses impostos continuará indo direto para o saco sem fundo do Estado. Nem um centavo a mais será distribuído para pobre algum. Não haverá um rolo de esparadrapo a mais num hospital público. Não haverá um real a mais na esmola do Bolsa Família, que continuará sendo a miséria que sempre foi. O Brasil continuará a ser um país injusto, desigual e pobre enquanto não for eliminada a relação senhores-escravos que existe entre o Estado brasileiro, que tem a chibata na mão, e os seus 200 milhões de cidadãos, que têm as costas para apanhar.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 16/2/2020