Como tenho ressaltado neste espaço, desde o início da pandemia havia o risco de que, em nome do combate aos efeitos econômicos e sociais do coronavírus, pudessem ser aprovados projetos legislativos com implicações negativas para o arcabouço fiscal e o ambiente de negócios do país.
Na última coluna comentei os riscos fiscais, que estão concentrando a atenção da maioria dos analistas. No entanto, me parece que os riscos ao ambiente de negócios não têm tido a devida atenção, e podem ter consequências extremamente danosas para o crescimento de longo prazo.
Em nome do combate à pandemia, parece ter se instaurado no Congresso um clima favorável à interferência em contratos privados, criação de empréstimos compulsórios, aumentos abusivos de impostos, tabelamento de juros e congelamento de preços, ressuscitando intervenções desastrosas no mercado que ocorreram em passado não muito distante e que pareciam superadas.
Leia mais de Fernando Veloso
O risco fiscal da falta de coordenação no combate à pandemia
Quais os efeitos do coronavírus sobre a produtividade?
É preciso proteger o curto prazo sem comprometer o longo prazo
A lista de projetos com essas características é longa e cresce a cada dia, mas uma breve discussão de algumas dessas proposições é ilustrativa. Por exemplo, o PLP 34/2020, em tramitação na Câmara dos Deputados, “institui um empréstimo compulsório para atender às despesas urgentes causadas pela situação de calamidade pública relacionada ao coronavírus (COVID-19)”. No mesmo tema de empréstimo compulsório, um projeto que pode avançar no Senado é o PLP 50/2020, que institui simultaneamente um imposto e um empréstimo compulsório sobre grandes fortunas, também sob o pretexto de atender a despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública.
Esta semana foi aprovado no Senado o PL 675/2020, que estabelece em seu Art. 5º que “Durante o período de vigência do estado de calamidade pública, as inscrições de registros de informações negativas dos consumidores, inclusive aquelas anteriores à pandemia da COVID-19, não poderão ser usadas para restringir o acesso específico a linhas de crédito ou programas de fomento que visem ao enfrentamento das consequências econômicas advindas da calamidade pública.” Seu Art. 6º determina que ficam suspensas todas as espécies de execuções judiciais cíveis propostas contra consumidores por obrigações vencidas a partir de 1 de janeiro de 2020.
Ontem encontrava-se na pauta de votação do plenário do Senado o PL 1166/2020, que estabelece teto de juros de 20% ao ano para as modalidades de crédito ofertadas por meio de cartões de crédito e cheque especial para todas as dívidas contraídas entre março de 2020 e julho de 2021. Também estava para ser votado nesta quinta-feira o PL 1542/2020, que suspende os reajustes anuais dos preços de medicamentos e das mensalidades de planos privados de assistência à saúde.
Devido à suspensão da sessão, a votação dos dois projetos foi adiada para a próxima semana. Para a semana que vem também está pautado o PL 911/2020, que eleva a alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido de instituições financeiras para 50%.
Logo no início da pandemia, lideranças importantes do Congresso se comprometeram a colocar em votação apenas projetos diretamente relacionados à pandemia e que refletissem amplo acordo entre os parlamentares. Nesse sentido, foi inteiramente justificável a rápida aprovação de programas importantes como o auxílio aos informais e o programa de crédito para micro e pequenas empresas, seguida da aprovação do auxílio aos estados e a promulgação da Emenda Constitucional do Orçamento de Guerra. Embora vários aspectos dessas iniciativas legislativas possam ser debatidos, não resta dúvida de que sua deliberação faz sentido no contexto atual de calamidade pública.
+ Samuel Pessôa: A natureza fiscal da epidemia
No entanto, nas últimas duas semanas a pandemia da Covid-19 passou a ser usada como pretexto para a deliberação de projetos que muitas vezes guardam pouca relação com a crise atual. Mesmo quando justificáveis em função da pandemia, as soluções propostas em geral dão grande margem para o oportunismo, abrangendo não somente pessoas ou empresas que tiveram grande perda, mas também aquelas que foram pouco afetadas. Vários projetos estendem os benefícios criados para o período anterior ou posterior ao previsto no decreto de calamidade pública. Outros projetos têm caráter punitivo em relação às instituições do sistema financeiro, com consequências potencialmente devastadoras para os mercados de crédito e de pagamentos.
Em resumo, projetos que podem afetar profundamente os pilares de uma economia de mercado, como a segurança dos contratos e a livre iniciativa, estão sendo rapidamente votados no plenário das duas Casas do Congresso, em geral com muito pouco debate e reflexão. Isso tudo em um contexto de votações em sistema remoto, o que dificulta em grande medida a negociação de projetos de maior complexidade. O Executivo, por sua vez, tem sido incapaz de estabelecer uma articulação mínima com o Congresso para deter o avanço dessa agenda populista.
Se essa marcha da insensatez não for interrompida, em breve teremos que lidar não somente com uma grave crise fiscal, mas também com danos irreparáveis ao nosso já combalido ambiente de negócios.
Fonte: “Blog do IBRE”, 18/05/2020