“Um movimento ‘anti qualquer coisa’ demonstra uma atitude puramente negativa. Não tem a menor chance de sucesso. As pessoas devem lutar por algo que desejam realizar e não simplesmente para evitar um mal, por pior que seja”, afirmou Mises, em tom profético, em sua obra A Mentalidade anticapitalista, publicada em 1956. Embora suas ideias sigam iluminando a escuridão, a grande maioria dos brasileiros (haja vista o resultado do 1o turno) segue na penumbra e, pior ainda, vagando de olhos fechados, sem querer ou saber como abri-los para ver os pontos de luz pelo caminho.
Nessas eleições, busquei ativamente o debate com amigos e colegas anticapitalistas. Concluí que, em geral, eles não têm muita clareza sobre o que, de fato, defendem. E não só isso: embora bem-intencionados, muitas vezes até ensaiam uma defesa frequentemente tortuosa, com meios e objetivos absolutamente contraditórios. “Estou votando contra o machismo”, “contra a homofobia”, “contra o racismo”… Posto de outra forma, parece que eles votariam a favor da liberdade. Mas não é a favor desse valor que estão verdadeiramente se manifestando, saibam eles ou não. Realmente, o ‘anti qualquer coisa’ mascara a falta de repertório e conhecimento e, infelizmente, muitas vezes a falta de vontade de buscar essas duas coisas. “Nada de novo sob o sol”, diria Mises se pudesse, imagino eu. Os perfis que ele ilustra em sua obra não diferem em praticamente nada do que presenciamos nessas últimas semanas.
ANTICAPITALISTAS DE ONTEM E HOJE
Embora enxuta, A Mentalidade anticapitalista é abrangente ao lançar luz a uma série de perfis anticapitalistas e suas motivações. Nesse artigo, abordaremos apenas três deles: o homem comum, o artista populista e o lacrador virtuoso. Vale dizer que esses nomes não foram dados por Mises, evidentemente, mas a seguir compreenderemos porque é possível localizar essas figuras a partir de suas reflexões atualizadas para nossa realidade.
“O homem comum” representa, como o nome já diz, a maioria das pessoas que foi às urnas neste 1o turno. Elas desconhecem completamente do que se trata o capitalismo e, muitas vezes, sequer sabem que este é o único sistema econômico bem-sucedido da história da humanidade, e, justamente, o alvo central do ataque da esquerda. “Do dia em que nascem até o dia em que morrem, os habitantes de um país capitalista são beneficiados a cada minuto pelos empreendimentos maravilhosos do modo capitalista de pensar e agir”, aponta Mises. Mas o homem comum vive na escuridão, inclusive histórica. Ele não conhece a essência da Revolução Industrial e ignora que, pouco antes dela, a sociedade ainda era dividida em castas. A mobilidade social é mérito do capitalismo, que alçou escravos, servos e pedintes à condição não só de produtores, mas de consumidores. No capitalismo, nós sabemos, o consumidor é o verdadeiro soberano. O que o homem comum desconhece é que, ele próprio, o consumidor, não seria soberano em qualquer outro sistema. Desconhece o dado que 94% das pessoas viviam na pobreza em 1820; e que, graças ao capitalismo, em 2020, esse número foi de apenas 10%. O que também desconhece é que grande parte dos meios/instrumentos intervencionistas que defende (para não dizer todos) geram precisamente os efeitos que ele gostaria de combater. Do ponto de vista do homem comum, ideias absurdas como furar o teto de gastos, imprimir dinheiro e revisar a reforma trabalhista para torná-la mais rígida parecem excelentes, a despeito do que o mínimo conhecimento econômico ou os exemplos da realidade possam atestar. Segue o homem comum de olhos fechados.
Entra em cena “o artista populista”. Mises diz que os artistas tendem a ser anticapitalistas porque temem o dia em que o soberano consumidor buscará outras fontes de entretenimento. “Um magnata do palco ou da tela deve sempre temer os caprichos do público. Pode acordar hoje rico e famoso e, no dia seguinte, ser esquecido”, afirma Mises. Ele não poderia imaginar, naquela época, que hoje em dia esse artista poderia inclusive ser cancelado. Mas, em 1956, os tempos eram outros e os artistas não estavam em contato tão direto com seu público como hoje: não havia Instagram, Twitter ou YouTube. A atualização dessa ansiedade que Mises atribui às vidas dos artistas é a versão populista desses personagens. O homem comum é anticapitalista e, portanto, quem se manifesta dessa forma é recebido com aplausos ou, melhor dizendo, curtidas e compartilhamentos. É claro que essa fama é tão ou mais volúvel quanto era em 1956, por isso eles precisam manter-se ativos: o que o homem comum quer, o artista populista entrega prontamente – de estrela no bumbum a bandeiras que exaltam ditadores. Para o leitor médio, já ficou evidente que não há contradição alguma entre as ações do artista populista e o próprio capitalismo, e sobre isso não há questionamento. O artista populista opera 100% alinhado à premissa básica do sistema: entregue o que o consumidor quer e terá sucesso. Mas não podemos esquecer desse pequeno, mas relevante detalhe: o artista populista usa a lógica e os meios viabilizados pelo capitalismo para combater o próprio capitalismo. De todos, esse é o perfil mais hipócrita. Como um verme, o artista populista mata, aos poucos, o seu hospedeiro. Talvez ele saiba disso e, se sabe, não se importa porque não precisa. Pode rapidamente sair do país – não para destinos socialistas e não sob a condição de refugiado, evidentemente.
Por fim, chegamos ao último perfil, o famigerado “lacrador virtuoso”. Vale dizer que esse perfil pode, perfeitamente, ser congruente com os perfis anteriores. O lacrador virtuoso é o homem comum ou o artista populista quando quer convencer os demais que detém valores mais nobres, que é, ele próprio, a encarnação da ética e da aspiração mais elevada e que ele é o bom, não obstante o fato de frequentemente não o ser. Também é o homem comum ou o artista que, de fato, possui boas intenções, mas não consegue compreender porque as consequências reais são mais importantes do que suas intenções mais puras. Esse anticapitalista geralmente discorre sobre a injustiça inerente ao sistema capitalista. A premissa do lacrador virtuoso é a igualdade. “A pior de todas essas ilusões é a ideia de que a ‘natureza’ conferiu a cada indivíduo certos direitos. Segundo esta doutrina, a natureza é generosa para com toda criança que nasce. Existe muito de tudo para todos. Consequentemente, todos têm uma reivindicação justa e inalienável contra seus semelhantes e contra a sociedade: a de receber a parcela total que a natureza lhes outorgou”, afirma Mises. E completa, mais adiante: “Cada palavra desta doutrina é falsa. A natureza não é generosa, mas sim mesquinha”. Contorcem-se os lacradores virtuosos ao ouvir essa afirmação. Como se pode dizer que não somos todos iguais? Que não podemos reivindicar nossos direitos? Que a natureza é mesquinha? É bem mais cabível questionar o oposto, porque tudo sobre a realidade evidencia que Mises está, de fato, correto. A natureza não existe em função do homem – o homem sobrevive apesar da natureza. Isso é tão verdade que somos seres absolutamente frágeis no mundo: não fosse nossa inteligência, estaríamos mais próximos da base da cadeia alimentar do que do topo. Todo tipo de ser vivo pode matar o homem sem qualquer esforço. O progresso da humanidade se deu pura e simplesmente pela racionalidade, cooperação, divisão de trabalho e consequente criação de riqueza e os próprios direitos são invenções humanas. “O que torna um homem mais ou menos próspero não é a avaliação de sua contribuição a partir de um princípio ‘absoluto’ de justiça, mas a avaliação por parte de seus semelhantes, que aplicarão somente o critério de suas necessidades, desejos e objetivos pessoais”, esclarece o autor. Esse não é um princípio cruel ou injusto, mas sim o que nos trouxe até aqui, até o momento mais próspero da história. A ojeriza do lacrador virtuoso ao capital é, no entanto, uma fina camada de maquiagem. Se, por um lado, brada o horror à desigualdade social atribuída ao capitalismo, por outro, o faz do conforto de sua casa e escritório com ar-condicionado, usando seu iPhone enquanto, em seu computador, compra online uma passagem de férias para a Europa. O lacrador virtuoso faz tudo, menos agir conforme o que defende.
O que é possível concluir trazendo A Mentalidade anticapitalista para o Brasil de outubro de 2022? Que é preciso combater o mal pela raiz e, nesse caso, a raiz é a ignorância. É preciso resiliência para nadar contra a corrente da hipocrisia e a favor da educação do homem comum, por mais que ele mesmo siga apedrejando os que garantem diariamente sua sobrevivência e liberdade. É preciso seguir disseminando conhecimento com a esperança de que os que abrirem os olhos por um instante possam se convencer pelo vislumbre da realidade. Para isso precisamos, mais do que nunca, de ideias tão fortes quanto holofotes.
*Por Flávia Sato, IFL-SP