Executado o cabeça, fica a obrigação intelectual e moral (eu não separo essas coisas) de dar conta dessa doença chamada terrorismo. Palavra que revela o anti-humano contido no mundo quando suspendemos, em nome de alguma coisa, todas as normas. Nosso equilíbrio é delicado e, estou convencido, impossível. Somos marcados pelos ideais explícitos que, na forma de mandamentos, nos tornam anjos, e pelos desejos implícitos, que nos fazem demônios. O encontro permanente dessas forças diz quem realmente somos. Pois assassinamos em nome de um Deus do amor e de uma justiça democrática, como reiteram as autoridades americanas. Não há ódio na aplicação da justiça contra os que ultrapassaram todos os limites. Tudo vale no estado de guerra – essa loucura com método que o Ocidente aperfeiçoou e tornou – valha-nos Deus! – uma “arte”. Onde foi parar a compaixão que leva à paz dos abraços?
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Li no Globo. Shafeeq-ur-Rehman, um jovem paquistanês que milagrosamente escapou da vingança cometida pelos talibãs, fez a pergunta crítica: Por que nos matam? De quem é essa guerra? Qual o nosso pecado?
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O terrorismo (ou o ataque a cidadãos alheios ao eixo da luta armada) rompe com um princípio básico da vida civilizada: nenhum homem deve ser punido pelos atos de outro homem. A menos que o ódio irracional devotado ao inimigo seja suficientemente forte para incluir uma vasta porção de pessoas que, perdendo aquilo que as torna humanos – sua singularidade -, sejam vistas como inimigas e tidas como responsáveis no mesmo grau pelas ações cometidas pelos oponentes. Repentinamente, um mundo que era individualista (meu sucesso e meu dinheiro são só meus) torna-se um coletivo irracional: eles são todos assassinos!
Todo residente nos Estados Unidos, americano ou não, republicano ou democrata, negro ou branco, rico ou pobre, islâmico, católico ou judeu, ateu ou religioso, criança ou adulto, imigrante legal ou ilegal, foi condenado pelo terror no 11 de Setembro. Esse englobamento por uma ideologia que coletiviza e torna uniforme o inimigo, fazendo qualquer dos seus segmentos um alvo de destruição, lembra uma lei da magia. No ato mágico, dizia Frazer, a parte representa o todo. Um fio de cabelo da vítima a representa, de modo que queimar o cabelo equivale a destruir a pessoa. Qualquer coisa – falar um dado idioma ou comer uma comida – produz essa identidade sem nuances e imperiosa que é a marca do terrorismo. Essa pecha que nega as circunstâncias, que nos tornam seres iguais e únicos simultaneamente. Daí o direito e o dever de ouvir o acusado ou o criminoso, por mais infame que tenha sido o seu crime.
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No terrorismo, como no tiro pelas costas, suspendem-se as pontes nas quais reina a palavra produtora de compreensão. Ademais, e esse é um ponto capital, ele não é um ato realizado entre nações como a guerra convencional, em que soldados uniformizados têm a paradoxal e louca licença para matar os que usam o uniforme inimigo em nome da paz. Terrorista não usa uniforme nem ocupa um território. Declarar guerra ao terror é como declarar guerra ao álcool ou ao mau-caratismo. Pois, diferentemente dos conflitos convencionais, nos quais um governo luta contra outro (conforme ensinou Rousseau), no combate ao terror chega-se a algo próximo à luta de todos contra todos, pois como prevenir um inimigo que pode ser qualquer pessoa?
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Antes da nossa formidável evolução para atos de terror em tempo real, assistidos por um presidente e seu staff, havia campos de batalha onde o destino dos países era decidido. A modernidade, com suas armas de destruição de massa, bem como com a escalada de ódio para com todo um grupo político ou religioso, inventou o ataque estratégico de modo que civis começaram a ser os mais atingidos. As coisas ficaram de ponta-cabeça: os civis morrem mais do que os militares, que podem optar pela rendição. É a guerra total.
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O indeferimento da mediação condena à revelia. Eis a marca do terrorismo que desnorteia. Que faz com que tudo seja um alvo. Aliás, nós somos os únicos seres capazes de abandonar a nossa frágil vestimenta humana, feita de uns tantos princípios em geral mal compreendidos e frequentemente incompatíveis entre si, para torturar, difamar e matar friamente: em nome de alguma moralidade. Não há coisa mais triste do que a conjunção de uma nobre causa – vamos liquidar a miséria – com a ambição política venal, como ocorre hoje no Brasil. Porque os fins que são nobres justificam todos os meios que são vis.
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Pior é a ausência de pontes. Sem recuo, a onipotência do terrorismo produz mais terrorismo e desumanidade. Neste caso, dizem suas vítimas, podemos usar a tortura e suspender os direitos de todos que forem suspeitos. O terrorismo legitima suspeitar do insuspeito. Ele ordena ignorar a humanidade dos inimigos porque o pagamento com a mesma moeda é a sua lei. Eis a condição ideal para promover as forças anti-humanas. Pois se nos foi dada a graça de engendrar a vida, também nos foi concedido o poder de matar e torturar sem problemas. A culpa é barrada pela moralidade que, em nome de algum deus e, hoje, de uma crença política alçada a nível religioso, possui uma tenebrosa onipresença, onisciência e onipotência.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 18/05/2011
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