A competição entre os candidatos a prefeito na cidade de São Paulo virou gincana religiosa. Representantes católicos afirmam que a candidatura de Celso Russomanno (PRB) é uma estratégia maquiavélica da Igreja Universal do Reino de Deus e da Rede Record para ganhar a Prefeitura. Identificam aí uma cruzada fundamentalista, perigosíssima, apocalíptica. De seu lado, Russomanno nega tudo. Garante que seu partido tem mais católicos do que evangélicos e até pediu uma audiência reservada com o cardeal-arcebispo dom Odilo Scherer para pacificar os ânimos (infelizmente, conforme este jornal noticiou ontem, a Cúria Metropolitana alegou problemas de agenda e não atendeu ao pedido).
Há uma tensão religiosa no ar poluído da nossa capital. O ambiente vai pesando, vai confluindo para aquilo que místicos de outras inspirações espirituais chamariam de “energia ruim” ou de “clima carregado”. A esta altura da campanha eleitoral, nada poderia ser pior.
As igrejas, quando convertidas em aparelhos partidários, não iluminam mais nada. Viram agentes das trevas. Todas as igrejas, sem exceção. A História está cheia de exemplos tenebrosos, todos conhecemos esses exemplos, mas, nesta hora obscura, não custa relembrar os princípios que servem de alicerce à crença democrática que nos unifica.
Uma disputa eleitoral – o rito mais alto da democracia, como gostam de dizer os cientistas políticos – existe para debater e, se possível, equacionar os impasses e as necessidades comuns de uma sociedade, qualquer que seja ela, uma cidade ou um país. Estamos falando aqui de impasses ou necessidades comuns (de uma comunidade): são impasses e necessidades, portanto, de ordem pública, que afetam todos, independentemente das particularidades individuais ou grupais de uns e outros. Em razão disso, os processos de discussão e de decisão que caracterizam as campanhas eleitorais democráticas pertencem à esfera da política, não da religião. Enquanto a primeira lida com argumentos racionais (ainda que, por vezes, nos pareçam um tanto estúpidos), a segunda se sustenta na fé. Quem pretende resolver a política com apelos vindos da fé pretende matar a política. Aliás, se a fé, sozinha, desse conta de equacionar os dilemas de uma cidade, a política não seria necessária – e poderia até ser dispensada, jogada fora, ou mesmo proibida. Em conclusão: trazer a coação eclesiástica para o núcleo do debate eleitoral constitui um ataque à democracia e à liberdade individual.
Sim, isso tudo já é sabido, é o bê-á-bá, mas parece que todo mundo se esqueceu do óbvio. Chega a ser inacreditável que líderes religiosos – evangélicos ou católicos, tanto faz – desconheçam princípios tão elementares, mas eles dão sinais de que os desconhecem e, às vezes, dão provas cabais de que os desprezam. Já vimos essa degradação em outras ocasiões. Na campanha presidencial de 2010, por exemplo, o pretexto do aborto abriu caminho para as cruzadas mais insanas, tornando irreconhecíveis faces que eram vistas como democráticas até então. Nessas horas de nuvens escuras, até mesmo políticos sabidamente agnósticos – ou ateus praticantes – assumem o papel de profetas moralistas empenhados em promover o fanatismo religioso para corroer o diálogo racional. As eleições se rebaixam, o potencial das urnas se apequena, a vida social se estreita – e a própria religião perde a graça.
Ninguém aqui tem o direito de se iludir. Quem promove o obscurantismo em períodos eleitorais não é o povo crédulo, como dizem os cínicos, mas as lideranças, os dirigentes religiosos e partidários, que exploram a credulidade dos humildes. Pelo que temos visto em São Paulo, hoje católicos e evangélicos enveredam pelo mesmo desvio, com pregações aparentemente antagônicas, mas que são igualmente antipolíticas. Se conseguirem transformar a eleição municipal numa contenda entre duas igrejas, essas lideranças religiosas (e partidárias) serão sócias na tarefa de desnaturar palanques em altares profanos.
Existe um problema no imbricamento entre religião, partido político e redes de televisão e de rádio, representado pela triangulação entre Igreja Universal, PRB e Rede Record? É claro que existe. Mas esse é um problema político, não religioso. E não é um problema dos evangélicos, por favor. Trata-se de um problema político passível de ser solucionado com ferramentas próprias da política, no âmbito do Estado de Direito (como, entre outras medidas, pela adoção de regras que proíbam a promiscuidade entre emissoras, partidos políticos e igrejas). Em tempo: existem inúmeras emissoras de orientação expressamente católica que caem na mesma distorção. Além disso, embora católicos petistas reclamem de Russomanno, é bom lembrar (outra vez, lembrar o óbvio) que o PRB se construiu com o apoio do lulismo, que também açulou seguidamente a TV Record por ter visto nela uma oportunidade de fustigar as “elites”.
Não, o fenômeno Russomanno não caiu do céu, assim como não vai para o céu. Ele decorre do lulismo, da ausência de regras na radiodifusão e do oportunismo de sempre. Não vale, agora, sair por aí dizendo que os evangélicos, por serem evangélicos, querem levar o fundamentalismo à Prefeitura paulistana. Nada mais falso, nada mais baixo, nada mais ofensivo. A fé pessoal de cada um não tem nada que ver com isso. Se queremos culpar, se queremos satanizar alguém, deixemos em paz os comuns do povo. Vamos procurar as causas na sacrossanta esperteza dos caciques e vamos debater politicamente o que politicamente foi urdido.
No Brasil, é bem verdade, como alguém logo vai avisar, até as guerras santas terminam em pizza (acompanhada de vinho do padre). Mesmo assim, recomenda-se cautela aos chefes religiosos. Cautela e humildade. Que ninguém volte a chutar a santa – e que ninguém bata a porta na cara de ninguém. De vez em quando, ter um pouco de fé na política também ajuda.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 20/09/2012
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