No domingo passado, antes que o dia raiasse, os habitantes de Trípoli foram acordados por metralhadoras. Quando ligaram a televisão, deram de cara com uma notícia oficialmente alvissareira: as tropas pró-Kadafi teriam dispersado os rebeldes em outras cidades e a artilharia que soava nas ruas da capital era simplesmente uma celebração da “vitória”. Os telespectadores que ainda apoiam o governo, aliviados, saíram de casa rumo à Praça Verde para festejar as boas novas.
Em tempo: a emissora que noticiou a “vitória” era a TV estatal, ainda a serviço do ditador. Sem o controle da “sua” emissora, dificilmente a ditadura líbia estaria de pé até hoje. Ela sobrevive porque, além da máquina de matar sua própria gente, conta também com outra máquina, a máquina da propaganda, para enganar o povo.
Eis aqui um tema central. Não obstante, nas análises em curso sobre a onda de levantes no mundo árabe, a manipulação da informação pelas ditaduras quase nunca é debatida, explicada, entendida. Deveria ser. A falsificação oficial nos regimes autoritários ou totalitários constitui um crime, embora esse crime ainda não seja reconhecido como tal pelos organismos internacionais que se ocupam da paz e dos direitos humanos. Ela não apenas pavimenta o caminho para a opressão da sociedade pela força das armas – esta, sim, já reconhecida como crime -, como viola um direito fundamental do ser humano, o direito à informação, e, desse modo, obstrui a livre formação da opinião e da vontade. Por isso, a propaganda oficial – e criminosa – ainda em funcionamento na Líbia merece muito mais atenção do que vem recebendo. Ela é uma triste lição para as democracias, tanto para as que já existem de fato como para aquelas que só existem em sonho. Com ela podemos aprender um pouco mais sobre:
a) O que o Estado não deveria ser autorizado a fazer com a comunicação de interesse público.
b) A que fim a manipulação da informação pelo poder público pode nos conduzir.
c) Como cada dia mais o jornalismo independente é vital para a manutenção da paz.
Voltemos, então, ao turbulento e absurdo domingo em Trípoli. Quem nos conta é o jornalista David D. Kirkpatrick, numa reportagem publicada na edição de segunda-feira do The New York Times. Ele relata a alegria de Noura al-Said, estudante de 17 anos, diante do noticiário do governo: “Ouvi as melhores notícias de toda a minha vida. Nós tomamos de volta todo o país.” Noura al-Said festejava a “vitória” na Praça Verde, ao lado de cerca de 2 mil manifestantes, muitos deles atirando para o ar.
Evidentemente, Kadafi não tomou de volta a Líbia coisa nenhuma. Os manifestantes governistas comemoravam um feito inexistente, embalados pelo noticiário, que, como de costume, mentiu. É verdade que houve disparos à guisa de comemoração na Praça Verde, como o próprio repórter americano constatou, mas a alegação de que as rajadas da madrugada não passavam de foguetório festivo não convencia mesmo os mais crédulos. O que não foi problema para os crédulos e muito menos para os noticiários oficiais. Para ambos, a idolatria do coronel Kadafi vale mais que o registro os fatos. É uma idolatria que vem de longa data, desde que o coronel tomou o poder – a mão armada – há mais de quatro décadas, aos 27 anos de idade. Desde então, o culto à personalidade virou uma prioridade de Estado e estabeleceu a tirania com base em duas ferramentas: a propaganda e a força bruta.
Não surpreende que, quando a sociedade rebelada já domina extensas faixas do mapa da Líbia, o ditador sobreviva exatamente porque manteve sob seu comando ao menos um pedaço das duas velhas ferramentas. Ele ainda conta com uma facção das Forças Armadas – leais a sua pessoa, não ao Estado – e com meios de comunicação oficiais. Sobre essas duas pernas consegue se equilibrar. As armas, ele as transforma em propaganda nas ruas de Trípoli. A propaganda vira arma de guerra dentro dos lares.
Até aí, o script parece não trazer novidades. É assim com todos os tiranos. Na falta de legitimidade, lançam mão de balas e notícias mentirosas. Nesse ponto, o teatro do ditador líbio seria idêntico ao teatro de outros autocratas. Em alguns quesitos, porém, a máquina de propaganda de Kadafi conseguiu ser ainda mais sufocante que suas homólogas – e também por isso merece atenção. Recentemente, circulou a notícia de que, na Líbia, os jogadores de futebol são identificados apenas pelos números de suas camisetas, de modo a não se converterem em ídolos que poderiam rivalizar com o tirano. Parece sandice, parece inconcebível, mas é assim que é.
David D. Kirkpatrick também registra essa particularidade em sua reportagem: “Os noticiários oficiais se esforçam para não citar o nome de nenhuma outra autoridade do governo, nem mesmo de jogadores de futebol, e, assim, garantem que o coronel Kadafi seja virtualmente a única figura pública no país.” O tirano de Trípoli, nessa matéria, ultrapassa a megalomania de outros ditadores: ele não se pretende “o maior” ou “o melhor”; ele se imagina o único – e ainda aglutina adoradores.
Por isso, para salvar vidas na Líbia, mais importante do que cercar o espaço aéreo para os aviões da tirania talvez seja cortar a propagação das mentiras oficiais. Mais jornalistas internacionais na Líbia são imprescindíveis, assim como são necessários mais relatos dos próprios rebeldes líbios, dirigidos aos seus conterrâneos e ao mundo. A pacificação do país passa pela oferta de mais informação independente.
Fora isso, que a decrepitude ridícula e sangrenta de Muamar Kadafi sirva de alerta contra os que, em outras tendas, acalentam o projeto de usar emissoras estatais como extensão de sua vaidade pessoal.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 10/03/2011
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