Quando surgiu, dez anos atrás, o G-20, grupo que reúne as vinte maiores economias mundiais, teve papel crucial para debelar a crise financeira que provocou a maior e mais veloz destruição de riqueza na história humana.
O G-20 era o maior exemplo do mundo multilateral que emergiu ao final da Guerra Fria, em que vários países defendem diferentes interesses num foro com regras comuns. Aquele tempo passou.
A reunião do G-20 marcada para os próximos dias em Buenos Aires é a marca do retorno a um mundo bilateral, com o enfrentamento entre as duas únicas superpotências terrestres, Estados Unidos e China, possível embrião de uma nova Guerra Fria.
É para o encontro entre o americano Donald Trump e o chinês Xi Jinping, marcado para sábado, que todos – em especial os mercados – olham com ansiedade e apreensão. Ele tornará explícitas as tensões e poderá redesenhar o equilíbrio de forças em vigor nos últimos anos.
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É um engano encarar o conflito China-Estados Unidos apenas como uma questão comercial, deflagrada pelas tarifas impostas pelo governo Trump contra as importações chinesas – que já atingem produtos no valor US$ 250 bilhões e poderão crescer, ainda que contestadas na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Está em jogo bem mais que isso: a disputa por esferas de influência e o mecanismo de codependência que enlaça as economias americana e chinesa. Os Estados Unidos dependem do excesso de poupança chinesa para financiar seu déficit comercial. A China depende do mercado americano para comprar sua produção industrial.
A posição dos americanos como importadores de capital e mercadorias estava em xeque mesmo antes das tarifas de Trump. A própria China tomou a decisão estratégica de sofisticar sua economia, investir em tecnologia e conhecimento, apostar no consumo interno e reduzir os investimentos em papeis do Tesouro americano.
A primeira resposta dos Estados Unidos, dada no governo Barack Obama, foi tentar criar na Ásia uma barreira de contenção ao avanço chinês, por meio de uma nova área de livre-comércio, estabelecida no Tratado para a Parceria Transpacífico (TPP).
A China reagiu com uma iniciativa colossal de investimentos externos, voltada para países centro-asiáticos e Europa (inclusive Rússia), de modo a reproduzir a trajetória da antiga Rota da Seda – a Iniciativa Cinturão e Estrada, maior prioridade estratégica de Xi.
Com a ruptura do TPP e a adoção de tarifas comerciais para tentar reduzir seu enorme déficit na balança comercial (quase US$ 800 bilhões), o governo Trump mudou a posição das peças no tabuleiro. Tenta desacoplar a economia americana da chinesa, embora estabelecer tarifas não seja um modo eficaz para fazer isso.
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Enquanto a poupança americana for insuficiente para as necessidades internas de financiamento, o déficit comercial persistirá e simplesmente migrará para países menos expostos (situação que, por sinal, já abriu oportunidades ao Brasil). A China inundará outros mercados com seus produtos, deprimindo outras indústrias locais.
Tamanha é a preocupação com os chineses nos Estados Unidos, que 80% dos republicanos no Congresso, outrora defensores intransigentes do livre-comércio, hoje apoiam as tarifas. Mas não há como rever o modelo de codependência entre americanos e chineses sem uma negociaçao bilteral profunda. A China não abrirá mão de sua transição da indústria para serviços, das exportações para o consumo interno, da importação de tecnologia para o desenvolvimento próprio.
A reação americana também criou uma causa comum entre China e Europa no combate ao protecionismo, reforço à Iniciativa Cinturão e Estrada de Xi. Uma defesa óbvia contra as tarifas americanas, que tem sido evitada até agora, é a China manter sua moeda ainda mais desvalorizada artificialmente, possibilidade que tem aguçado a tensão nos mercados financeiros.
A ansiedade embute o risco de uma crise financeira aguda, embora em intensidade menor que a de 2008. O Fundo Monetário Intenacional já alertou para o alto grau de alavancagem dos empréstimos a empresas em situação crítica (US$ 1,3 trilhão, valor comparável ao de 2007). A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) reduziu sucessivas vezes as perspectivas de crescimento global.
O ex-secretário do Tesouro Hank Paulson, um dos artífices do combate à crise de 2008 e um dos maiores conhecedores da dinâmica sino-americana, lançou este mês outro alerta: a possibilidade de uma nova Guerra Fria. “Esta região precisa observar com atenção a perspectiva de aquilo que, até agora, era visto como uma competição estratégica saudável desandar para uma Guerra Fria”, afirmou em Cingapura.
Do Mar do Sul da China à Ucrânia, não faltam regiões que opõem interesses chineses e americanos e trazem potencial para conflitos bélicos. “Gostemos ou não, se quisermos sobreviver e manter nossas identidades separadas, é necessário aprender qual é o interesse conjunto em qualquer momento do tempo”, disse Paulson.
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Apesar do embate entre Trump e Xi ser visto como enfrentamento de dois modelos econômicos distintos, as economias americana e chinesa funcionam hoje de modo muito parecido. Ambos querem proteger seus empregos e mercados. Xi adotou até uma versão daquilo que poderíamos chamar de “imperialismo com características chinesas”.
O americano Stephen Roach, da Universidade Yale, acredita ser possível criar uma agenda comum em torno de temas como acesso a mercados, poupança e segurança digital. Mas vê com pessismo a possibilidade de que Trump e Xi saiam de Buenos Aires com algum acordo.
Para uma nova Guerra Fria, não é necessário que cada lado defenda seu modelo econômico ou político como o melhor para todos. Basta, como diz Mark Leonard, diretor do European Council on Foreign Relations, cada um acreditar que só pode haver um vencedor.
Fonte: “G1”, 28/11/2018