Iremos analisar, a seguir, como a posição social do indivíduo, no Brasil, pode influenciar a sua própria percepção sobre cor. Destaca-se, deste modo, a relação entre o status econômico, intelectual e cultural do indivíduo e a forma pela qual a sociedade o classifica, em termos raciais. Certamente a resposta não é matemática, mas alguns exemplos, historicamente situados, já podem nos ajudar a compreender a dimensão do problema. Neste sentido, corrobora-se o pensamento de Caio Prado Júnior, quando afirmou: “A classificação étnica do indivíduo se faz no Brasil muito mais pela sua posição social; e a raça, pelo menos nas classes superiores, é mais função daquela posição do que dos caracteres somáticos”.
A fertilidade de casos na história brasileira sugerindo a participação dos negros nas camadas sociais elevadas induz à percepção de que a miscigenação esteve presente na história brasileira em todos os momentos e à população que emergiu desse caldeirão de raças não foi negada a participação social. O fato de ser mulato, ou preto, parece não haver impedido a assunção de cargos ou de posições sociais de destaque, ainda que na época da Colônia. Relevante exemplo pode ser extraído da Ordem de 1731, emanada por D. João V, que revela, pelo menos, magnífico exemplo de recusa à discriminação e a postura contrária da autoridade máxima ao manifestado preconceito de cor. Por meio dessa norma, o Rei D. João V conferiu poderes ao Governador da Capitania de Pernambuco, Duarte Pereira, para que empossasse um mulato no cargo de Procurador da Coroa, de grande prestígio à época, afirmando que a cor não lhe servia como um impedimento para exercer tal função. Haveria obstáculo, no entanto, se ele não fosse bacharel. E destaque-se que tal determinação ocorreu com, pelo menos, 150 anos de avanço em relação ao fim da escravatura!
Confira-se com o inteiro teor da norma:
“SOBRE DAR POSSE AO DOUTOR ANTONIO FERREIRA CASTRO DO OFÍCIO DE PROCURADOR DA COROA, PELO MULATISMO LHE NÃO SERVIR DE IMPEDIMENTO. Dom João por Graças de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves d’aquém e d’além mar, em África Senhor de Guiné &. Faço saber a vós Duarte Sodré Pereira, Governador e Capitão General da Capitania de Pernambuco, que se viu a carta de vinte e um de Novembro do ano passado, em que me dá conta dos motivos, que tivestes para não cumprirdes a Provisão, que eu fui servido mandar passar ao Bacharel Formado Antonio Ferreira Castro de Procurador da Coroa d’essa Capitania por tempo de um ano, em cuja consideração me pareceu ordenar-vos que com efeito deis posse ao dito Antonio Ferreira Castro, cumprindo a minha Provisão de vinte e três de Agosto do ano passado, tendo entendido que não tivestes justa razão para replicardes a ela, porquanto o defeito, que dizeis haver no dito provido por este acidente excluísses um Bacharel Formado provido por mim para introduzirdes e conservares um homem, que não é formado, o qual nunca o podia ser pela Lei, havendo Bacharel Formado. El Rey, Nosso Senhor o mandou pelos Doutores Manoel Fernandes Varges, e Alexandre Metello de Souza e Menezes, Conselheiros do seu Conselho Ultramarino e se passou por duas vias. Joam Tavares a fez em Lisboa occidental a 9 de Mayo de 1731 — O Secretário Manoel Caetano Lopes de Lovre a fez escrever — Manoel Fernandes Varges, e Alexandre Metello de Souza e Menezes — ”
(Publicado em No Race BR)
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