A madrugada de 4 de novembro de 2021 entrará para história como um marco na tentativa definitiva de acabar com a estabilidade econômica conquistada pelo Plano Real. Exaltando as melhores intenções políticas e
alta preocupação social, uma maioria parlamentar de ocasião aprovou, em primeiro turno, a chamada PEC dos Precatórios que, linhas gerais, pedala o pagamento das dívidas judiciais consolidadas, explode com o teto de gastos e cria uma gambiarra fiscal para atender os interesses do governo de plantão. A votação em segundo turno foi de roldão, cabendo, agora, ao Senado, como alta Casa Legislativa que é, recompor o sinal da razoabilidade perdida.
Sim, o casuísmo governa o Brasil. Em nossa combalida República, sobram voluntarismos passageiros, faltam instituições referenciais. O fato é que não temos o bom hábito de aprender com as experiências dolorosas do passado. A época da inflação galopante já está muito distante na memória popular; poucos lembram das maquininhas de remarcação diária de preços nos supermercados, das tentativas frustradas de tabelamento, dos fiscais do Sarney, Plano Cruzado, Plano Bresser, Plano Collor e por aí vai. A muito custo e experiências frustradas, chegamos ao real e ao controle inflacionário. Mas o tempo correu, e o ontem pertence ao pó.
Mais de Sebastião Ventura
Emendas de relator são inconstitucionais
Pelo fim da reeleição
Ora, aprimoramentos institucionais duradouros exigem prudência e cuidados permanentes. Logo, políticas fiscais irresponsáveis ou simplesmente populistas aniquilam o vigor das instituições, abrindo o flanco para retrocessos danosos. Ilustrativamente, após a tragédia do governo Dilma — que culminou na pior recessão brasileira, desaguando no processo de impeachment —, foi aprovada a Emenda Constitucional n° 95, de 15 de dezembro de 2016, visando a restabelecer a confiança na sustentabilidade das contas públicas e, ato contínuo, reverter a trajetória explosiva da dívida federal.
Instituiu-se, então, o chamado Novo Regime Fiscal, fixando, regra geral, um teto de gastos às despesas primárias, autorizada correção monetária pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Em reforço à responsabilidade fiscal, a Emenda Constitucional n° 109, de 2021, inseriu o artigo164-A na Lei Maior da República, determinando que “a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis”.
Lembrando, ainda, que a sustentabilidade fiscal deve enaltecer “níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida” (artigo 163,VIII, ‘b’, CF/88).
Como se vê, para evitar a tentação perdulária de governos passageiros, o legislador constitucional resolveu blindar as contas públicas frente a ímpetos eleitorais ou meramente eleitoreiros que, pelo lucro das urnas, são capazes de sandices fiscais tresloucadas. Recompondo a razão, em recente palestra comemorativa aos 60 anos da Escola Brasileira de Economia e Finanças da FGV, o competente ex-secretário Bruno Funchal fez esclarecedora exposição, realçando a importância do teto de gastos nos efetivos esforços governamentais para o devido ajuste da trajetória fiscal.
Sobre o ponto, apesar do impressionante gasto público gerado pela Covid19, as reformas estruturais realizadas, em compasso com a aceleração da economia, poderão, se mantidas, conter a evolução da dívida bruta em
patamares similares à pré-pandemia, contrapondo projeções indicativas à superação da fronteira dos 90% do PIB. Ou seja, as margens positivas gerada pela reforma da Previdência, a suspensão temporal de majorações
remuneratórias (LC 173/2020), a resolução do passivo da Lei Kandir (LC176/2020) e a instituição do Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal (LC 178/2021) são avanços institucionais relevantes que não podem ficar à mercê de retrocessos populistas de ocasião.
Aqui chegando, importante realçar que a defesa do rigor nas contas públicas não traduz contrariedade ou desprezo a políticas públicas de combate à pobreza e auxílio aos carentes; tais pautas e ações concretas são
fundamentais em países de alta desigualdade, como o Brasil. Todavia, a ampliação do colchão de proteção social não pode se dar às custas do equilíbrio econômico. Ou seja, o mérito da defesa da responsabilidade fiscal é frontal e determinado: busca evitar que a medida social de hoje se transforme em mais miséria amanhã. Afinal, não há lanche grátis e, salvadores da pátria, cedo ou tarde, custam caro à nação.
A questão que se coloca, portanto, é como bem equilibrar as contas públicas em razão do robusto esforço orçamentário ocasionado pela pandemia. O ajuste, aqui, não é fácil e abre espaço para importante discussão
democrática sobre a qualidade do gasto público, “misallocation” e insustentáveis subsídios de empreitada. Em outras palavras, os desafios do presente oportunizam sério e inadiável debate político-democrático sobre
uma série de cooptações orçamentárias, despidas de espírito público soberano.
Incompreensivelmente, o governo e sua maioria parlamentar de veraneio, em vez de enfrentar temas sensíveis à luz do interesse nacional, buscaram a saída mágica da flexibilização do teto de gastos, criando uma gambiarra,
com tintas de salvo-conduto, a pedaladas fiscais. Sem cortinas, é como colocar a corda no teto, o banquinho no chão e deixar o pescoço à mostra. Portanto, a manobra é perigosa e pode não terminar bem. Aliás, já começam
a surgir murmúrios legislativos para o trem da alegria de repasses bilionários a fundos eleitorais, festivas emendas parlamentares e aumento do funcionalismo.
No rastilho de pólvora da explosão fiscal, o açodamento processual de tão complexo projeto legislativo, associado à inexistência de exaustivos debates parlamentares, oportunizam o surgir de jaboticabas normativas de discutível constitucionalidade. Logo, não é e não será surpresa a judicialização da matéria nem o fato de a Suprema Corte barrar certos desatinos legislativos.
Aí não faltarão aqueles a malhar o Supremo Tribunal Federal (STF) por invadir questões políticas supostamente alheias à sindicabilidade judicial. Sim, o Supremo tem seus pecados, e a crescente hipertrofia institucional da Corte merece ser debatida em nome do saudável equilíbrio republicano. Agora, quando defrontado com a inconstitucionalidade pulsante, é dever do tribunal agir e proteger a Constituição frente a maiorias parlamentares
momentâneas que podem muito, mas não podem tudo.
Entre estilhaços do teto de gastos, seguimos nós no redemoinho da inflação ascendente, câmbio nas alturas e juros oficiais no batente. E ainda vai mais. No apagar das luzes, talvez o epitáfio do Plano Real