Há um componente propriamente moral no capitalismo, a saber, o fato de as pessoas confiarem em suas instituições e em seus governos. No momento em que os cidadãos percebem que os governos agem preferencialmente em proveito de determinados grupos de capitalistas, com privilégios e favorecimentos dos mais diferentes tipos, começa a prosperar um sentimento de desconfiança nesses governos. Esses passam a aparecer como sendo francamente parciais, apenas voltados para atender certos interesses. Desenvolve-se a ideia de que as instituições desses países são também viciadas, pois seriam moldadas para atender aos benefícios desses poucos privilegiados e escolhidos.
Ora, o capitalismo viceja lá onde esses valores são prezados e respeitados. Uma ideia central da economia de mercado reside na responsabilização individual e empresarial. Se uma empresa não faz bons negócios ou é irresponsável, cabe a ela arcar com essas atitudes, sendo responsável por aquilo que faz. Contudo, se prospera a ideia de que algumas empresas, por seu tamanho, não podem quebrar, termina se difundindo a concepção de que há empresas e empresas, umas sendo regidas pela competição e pela responsabilidade, outras por privilégios e irresponsabilidades. O problema é aqui de monta, pois é minado um dos pilares mesmos de uma economia de mercado e da democracia.
Cria-se, desta maneira, um ambiente favorável a atitudes socialistas voltadas contra a economia de mercado, visando, então, a cercear o direito de propriedade. O capitalismo vem a ser percebido como um sistema que desiguala oportunidades e cria favorecimentos. Ocorre uma perversão do capitalismo, de seu espírito, produzida por certos capitalistas e governos, que termina criando uma predisposição favorável a seu desaparecimento. Um caldo de cultura anticapitalista é produzido pelo próprio capitalismo, erodindo as suas bases morais.
Luigi Zingales (“Capitalism after the crisis”. In: “National Affairs”) faz uma oportuna distinção entre forças pró-business e pró-mercado, dentro da própria sociedade capitalista, uma a enfraquecendo e outra a desenvolvendo.
A primeira se caracteriza por forças que lutam pelos mais diferentes tipos de privilégios e favorecimentos, baseados, por exemplo, na ideia de que certas empresas não podem quebrar, devendo os governos, logo os contribuintes, contribuir para o seu resgate. Tais atitudes estão baseadas no principio, se é que se pode utilizar essa expressão, da irresponsabilidade moral. No momento dos lucros, dizem defender a economia de mercado; no momento dos prejuízos, procuram se amparar nos governos, desprezando os mesmos princípios do livre mercado que diziam defender.
Outro exemplo dessa atitude encontra-se em favorecimentos nos financiamentos do tipo dos que são oferecidos pelo BNDES, que capta, no Tesouro Nacional, recursos que são remunerados numa taxa inferior aos financiamentos por ele concedidos, a taxas superiores. Ou seja, são os contribuintes que estão pagando para que determinados setores ou empresas sejam discricionariamente favorecidos por um banco que se apresenta como público. Outra face sua é o desenvolvimento, não apenas entre os capitalistas, mas entre os sindicatos de trabalhadores, do corporativismo, voltado, especificamente, para a concessão de privilégios. O corporativismo é a outra face do capitalismo de compadrio.
A segunda se caracteriza pela primazia de um mercado impessoal, onde, dada a sua natureza específica, não deveria haver lugar para favorecimentos particulares, quando mais não seja pelo fato de que não cabe ao governo interferir materialmente nos mercados. Digamos, para efeito de tornarmos mais clara a ideia, que o governo deveria ter, sobretudo, uma ação visando a assegurar a infraestrutura institucional, aquela, precisamente, que torna possível a impessoalidade dessas relações, a saber, o direito de propriedade, a validade dos contratos, a infraestrutura e a segurança jurídica. Ou ainda, do ponto de vista material, assegurar uma infraestrutura que favoreça a todos indiscriminadamente, como portos, rodovias, ferrovias e hidrovias.
O seu princípio, do ponto de vista moral, é a responsabilidade, cada um arcando com as consequências de suas ações, não cabendo uma transferência de responsabilidades. Maus negócios não são assegurados pelo Estado, mas são de inteira responsabilidade dos que tomaram essas decisões, não cabendo ao contribuinte pagar por isto. As forças pró-mercado teriam, então, como contraparte a responsabilidade moral. Note-se que o governo teria naturalmente menos funções, pois, ao não se imiscuir nos negócios e só regulando formalmente os mercados, o seu espaço para a concessão de privilégios também diminui. Em consequência, reduz-se também o espaço onde floresce a corrupção.
A dimensão ética do capitalismo reside na liberdade, na responsabilidade, na meritocracia, na recompensa do trabalho e do esforço, o que significa dizer que cada um deve arcar com as consequências de suas ações. Ou seja, não cabe a alguns ficar com os lucros e socializar os prejuízos, como tem sido o caso de grandes bancos, principalmente de investimentos, que foram salvos, desta maneira, da crise atual. O que o governo dos EUA fez na crise foi salvar um setor baseado em forças pró-business e esse resgate terminou causando dano ao próprio capitalismo, pró-mercado, prejudicando a economia de livre mercado, a competitividade e a responsabilidade. Logo, não haveria empresas demasiadamente grandes para falir, sendo essa, na verdade, uma bandeira pró-business, voltada para favorecer poucos, em nome de um sistema de livre mercado que essas mesmas forças pervertem. As forças pró-business estão, mais particularmente, focadas na perversão moral do capitalismo, na abolição dos seus valores, o que se traduz pela perda da adesão política ao capitalismo, que passa a ser visto como fonte de valores morais pervertidos.
Fonte: O Globo, 21/11/2011
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