Antes que venha o carnaval, aproveito para especular sobre a política e o coronavírus. Ficou um pouco no ar um debate sobre que tipo de governo consegue lidar melhor com a epidemia.
Os chineses fizeram um hospital em dez dias, e alguns analistas acharam que isso era uma vantagem de um governo autoritário: não precisava de trâmites burocráticos da democracia.
Acontece que a própria democracia tem meios de suprimir sua lentidão quando se trata de uma emergência nacional. Os japoneses, por exemplo, demonstraram rapidez na recuperação do país dos estragos provocados pela tsunami.
Um outro argumento, em muitos textos ocidentais, afirmava que só um país como a China tinha o poder de isolar 12 milhões de pessoas.
Possivelmente, muitos países falhariam em isolar tantas pessoas. No entanto, a própria China falhou de uma certa forma em Wuhan. Cinco milhões de pessoas deixaram a cidade, segundo o prefeito demissionário, antes que ela fosse isolada.
Um dos fatores que dificultaram a Wuhan reconhecer a expansão do vírus foi precisamente o medo da burocracia local de comunicar à burocracia nacional um fato tão grave. A tendência é esconder. O medico Li Wenliang, que chamou a atenção para a propagação do coronavírus, foi visitado pela polícia política e forçado a admitir que propagava fake news.
Depois de sua morte, tornou-se um herói popular. Mas o que aconteceu com ele mostra a fragilidade maior dos regimes autoritários ao lidar com esta questão: a falta de transparência.
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Há um elo entre transparência e cooperação. O modelo democrático que valoriza a transparência tem melhores condições de atrair a energia popular e avançar com o seu consentimento.
Uma resposta a uma epidemia nunca será perfeita. Entre o viés autoritário e o democrático, continuo achando que o segundo tem mais eficácia.
Mas, para que a resposta funcione na plenitude, é preciso também que a democracia ande a pleno vapor. As autoridades brasileiras, por exemplo, não escondem as grandes tragédias urbanas provocadas pela chuva .
No entanto, não assumem suas consequências. Não reconhecem a fragilidade da infraestrutura, não admitem seu longo descaso, muito menos começam a adotar as medidas quase que consensuais entre os que estudam o impacto desses eventos extremos.
Espera-se muito das eleições municipais. Para se desfazer da complicação do tema, diz-se: é um ano de eleição, é preciso escolher bem.
Mas os candidatos pouco podem fazer sem uma compreensão de que o tema transcende ao âmbito municipal. Seria preciso que todas as dimensões do poder se dessem conta. E, é claro, que a própria sociedade se envolvesse na sua autodefesa.
Outro dia vi a história repetida por Bolsonaro sobre a troca de povos, japoneses para cá, brasileiros para lá. O sonho de trocar de povo tem sido recorrente. Na visão onírica, o povo deveria trabalhar e ser disciplinado como os japoneses. E não gastar dinheiro na Disney.
Os dados inquietantes sobre a crise ambiental passam um pouco em branco, como a temperatura de 20 graus na Antártica.
Os acontecimentos na China nos estimulam a buscar saídas para essas armadilhas circulares: o governo sonha com outro povo, o povo sonha com outro governo.
Assim como nas cidades, a resposta transcende à escolha eleitoral. Pede mudanças mais amplas. Na verdade, uma adaptação à nova realidade.
Não pretendo esgotar o tema, muito menos diminuir a importância das eleições. Mas só uma grande transformação cultural dará conta dessas mudanças que alteraram as bases da vida no planeta.
Mesmo sem mitificar a ciência, já no princípio do século, achava que o caminho de uma política adequada dependeria de uma sólida aliança com os cientistas.
Hoje, ao ver um governo que se distancia deliberadamente da ciência, não creio que o obscurantismo triunfou. Ele apenas torna mais difícil uma tarefa que, mesmo ao lado do melhor conhecimento científico, é uma das mais complexas que a imaginação política já enfrentou.
Fonte: “O Globo”, 17/2/2020