A transição do primeiro para o segundo turno permite situar melhor um tema explorado por alguns observadores do cenário eleitoral anterior a 3 de outubro: a “despolitização” da campanha para a Presidência. Por trás das diferenças de ênfase quanto ao sentido do termo, tais análises se pautaram por pressupostos que exigem revisão à luz dos resultados das urnas. O que elas tinham em comum? O que mudou?
Todas tinham por pano de fundo a crítica à dominância dos cálculos eleitorais de curto prazo, em detrimento de um horizonte programático propício ao debate em torno dos rumos das políticas públicas. Além disso, a projeção dos “ativos” políticos dos candidatos estaria determinada pelos marqueteiros, subsidiados por pesquisadores. A maioria das críticas foi dirigida, com razão, a uma oposição desidratada pela ação combinada de vários fatores, com destaque para suas dificuldades internas. O foco incidia sobre as dificuldades do principal partido de oposição, o PSDB: a disputa entre os pré-candidatos, a omissão do legado do governo FHC, a forma improvisada como se deu a escolha do vice. Com a exceção do artigo de José Arthur Giannotti no Aliás de 19/9 – que situava a questão em termos de identidades partidárias calcadas em concepções divergentes de Estado e de democracia -, as críticas à despolitização da campanha foram circunscritas ao curto prazo. O aspecto mais intrigante, porém, foi a omissão da candidatura de Marina Silva, não obstante fosse a voz dissonante, pela ênfase em seus compromissos programáticos e no sistema de valores em que estão ancorados.
Em resumo, prevaleceu o universo polarizado entre Dilma e Serra, entre o lulismo oficial e as oposições – projetado na ofensiva plebiscitária do presidente Lula nos últimos anos. Por isso não há como evadir uma questão derivada, ou seja, a despolitização consentida pelas oposições. Esta não se reduz ao poder dos marqueteiros de converter os candidatos num registro passivo do que os seus pesquisadores sugerem ser a “cabeça do eleitor”. Ela resulta da desconstrução das identidades partidárias da oposição, pelo lulismo oficial, graças à apropriação dos seus feitos naquilo que é bom, relevante, eficaz aos olhos do eleitor; e à atribuição daquilo que é por ele visto como negativo.
Qualquer balanço dos fatores que explicam a dificuldade de antecipar o segundo turno deve partir de uma tripla constatação, portanto. Primeira: até então, os termos da concorrência eleitoral foram ditados pelo presidente Lula e por sua presença avassaladora na cena nacional. Segunda: seus cálculos políticos falharam, apesar de ancorados no bom desempenho da economia, nos índices de popularidade, no sentimento de bem-estar do eleitorado – e no uso intensivo dos recursos políticos da Presidência e do Estado. Terceira: os enormes recursos de poder acumulados em mãos do governo foram insuficientes para mobilizar parcela relevante do eleitorado – que se move num universo de valores pluralista e alheio (se não hostil) a maniqueísmos.
É contra esse pano de fundo – no qual os valores voltaram a contar sem prejuízo de alta rentabilidade eleitoral – que os efeitos dos “fatos novos” adversos para o governo devem ser situados: as quebras de sigilo, o contorcionismo dos responsáveis pela Receita Federal, os escândalos envolvendo a Casa Civil, os ataques do presidente à imprensa. Essas constatações obrigam a refletir sobre o binômio politização/despolitização, sim, mas à luz de questões de ordem mais geral, ou seja, o lugar dos valores na cabeça do eleitor, o papel das classes médias emergentes e a forma como o bom desempenho da economia incide sobre a política.
Para começar, é necessário explorar melhor o fato de que a despolitização da campanha é um fenômeno derivado da politização do Estado. Com Lula e o lulismo – fenômeno inseparável da vocação hegemônica do PT – a política mudou de lugar. Passou a ser pautada pela incorporação ao Estado dos interesses organizados de todo tipo, empresarias e sindicais, pela criação de associações sob controle do Estado, à margem das estruturas da democracia representativa, combinada aos incentivos à fragmentação partidária. Daí uma primeira consequência: os conflitos de interesses que são inerentes à sociedade civil no sistema capitalista – democrático – foram trazidos para dentro do Estado. Sob esse aspecto, o nome do jogo político é a instabilidade das regras do jogo das quais depende o funcionamento das instituições, estatais ou não. O processo de capitalização da Petrobrás com seus “ires e vires” é um bom exemplo dos custos inseparáveis dessa modalidade de politização.
A campanha de Marina Silva, a veemência com que defendeu seus valores, sem prejuízo de uma alta rentabilidade eleitoral, ilumina um processo de mudança social a ser mapeada por cientistas sociais. A respeito do qual, porém, existe uma certeza, conhecida na literatura, sobre as relações entre economia e política em tempos de vacas gordas. A rápida mobilidade social ascendente criada por um capitalismo dinâmico como o nosso deixa pouco espaço e nenhum tempo para as classes emergentes (e por emergir) serem pautadas pela lógica política do tipo amigo-inimigo. Desse ponto de vista, a política pode estar mudando de lugar, na sociedade, a partir de um novo registro. Em termos microssociais, significa que a recriação de um horizonte de mudança econômica positivo para o eleitor-consumidor pode vir associada a uma determinação menos simplista da política pela economia e/ou pelo tão celebrado “feel good factor”. O bom desempenho eleitoral de Marina no Nordeste e entre as classes médias emergentes faz pensar, e exige uma análise ponderada dos fatores extraeconômicos que determinam o comportamento eleitoral entre nós.
O Estado de S. Paulo – 16 de outubro de 2010
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