Segundo recentes notícias da imprensa especializada, o governo planeja alterar determinadas regras de investimentos das entidades de previdência privada. Sobre o tema, convém destacar, inicialmente, que o Brasil passa por um progressivo processo de alteração do paradigma previdenciário nacional. Objetivamente, o governo — antevendo o estouro do rojão — está procurando limitar a responsabilidade da previdência pública, fazendo da previdência complementar (aberta e fechada) a alternativa viável para aqueles trabalhadores que almejarem uma aposentadoria de maior calibre pecuniário. No papel, tudo está muito bonitinho; resta saber se, na prática, a teoria irá funcionar.
Pois bem. Não há dúvida de que precisamos debater, urgentemente, a questão previdenciária. A urgência do debate decorre do perfil demográfico da população brasileira, no qual se destacam duas variáveis fundamentais: queda da natalidade infantil e aumento da longevidade de vida. Tais características poderão ter efeito explosivo na esfera previdenciária, pois significam que, no longo da curva, as contribuições dos trabalhadores irão diminuir, enquanto que, na outra ponta, haverá substancial incremento dos benefícios de previdência. E, se o déficit de hoje já é assustador, nos dias vindouros a situação tenderá ao insuportável.
Nesse contexto, é perfeitamente compreensível a estratégia do governo em estimular o mercado de previdência privada. Agora, o estímulo deve ser acertado, pois, do contrário, ao invés de avanço, teremos um autêntico retrocesso de proteção social. Logo, antes de palavras vazias, precisamos de uma efetiva política pública de incentivo e a apoio às entidades de seguro previdenciário. Ocorre que, quando falamos de “política pública”, estamos nos referindo a um projeto nacional livre de populismo, demagogia e interesse do governo.
Aliás, nos termos do artigo 3º da Lei Complementar 109/2001, a ação do Estado será exercida com o objetivo de “formular a política de previdência complementar” (inciso I) e “proteger os interesses dos participantes e assistidos dos planos de benefícios” (inciso VI). Ou seja, por força do inarredável interesse social que permeia as relações previdenciárias, é função do Estado evitar que o mercado de previdência privada se transforme em uma venda de ilusões, no qual o beneficiário, desavisadamente, veste um nariz de palhaço para receber uma aposentadoria minguada e distante das festivas promessas de renda fácil ao tempo da pactuação.
Ora, é sabido que, para honrar suas obrigações futuras, os fundos de pensão e as entidades abertas de previdência devem, a partir de fundamentado cálculo atuarial, obter uma dada média de rentabilidade anual com vistas a formar o patrimônio garantidor dos benefícios contratados. Dentre as diversas aplicações possíveis, muitas entidades — como forma de minorar os riscos de investimentos — alocam grande parte de seus ativos em títulos vinculados à remuneração da Selic, especialmente Certificados de Depósito Interbancário (CDI).
O governo, todavia, sob a alegação de estar preocupado com a forte indexação do mercado ao CDI, planeja limitar as aplicações financeiras vinculadas à taxa Selic. Tal medida, além de possuir potenciais traços de inconstitucionalidade, forçará uma adaptação do portfólio de investimentos das entidades previdenciárias que, obrigatoriamente, terão que recorrer a aplicações de maior risco. E maior risco, dentro de padrões realistas de gestão, significa maiores possibilidades de perdas. Portanto, muita cautela com os meigos discursos que querem vender latão por ouro…
Quanto à inconstitucionalidade, imperativo lembrar que o artigo 202 da Constituição Federal determina que o regime de previdência privada deve ser baseado “na constituição de reservas que garantam o benefício contratado”. Consequentemente, se a regra constitucional determinou que as reservas devem garantir o benefício contratado, é porque todo e qualquer garrote sobre os beneficiários/segurados representará objetiva e direta materialização do supremo dos vícios de ilegalidade.
Nesse contexto, o governo deve tomar muito cuidado na hora de mexer nas regras de investimentos previdenciários. E tem que tomar cuidado para que, na ânsia de resolver seus problemas de política monetária, não venha a criar um gigantesco passivo judicial. Falando nisso, é bom ressaltar aos doutos do Planalto que o artigo 9º, parágrafo 2º, da Lei Complementar 109/2001 expressamente veda o “estabelecimento de aplicações compulsórias ou limites mínimos de aplicação”. A razão de ser dessa norma é, justamente, evitar que interesses políticos de ocasião venham a governar a estratégia de investimentos das entidades de previdência privada.
Agora, longe de mim — bem longe — querer dizer que o governo está fazendo isso para usar politicamente os bilionários recursos dos fundos de pensão e entidades abertas de previdência privada. Acredito, sinceramente, que os atuais inquilinos do poder não cometeriam tal temeridade contra a necessária higidez jurídica e financeira que deve presidir as relações de previdência complementar.
Em tempo, é oportuno lembrar que a famigerada “CPI dos Correios” já havia apontado supostos fatos nada lisonjeiros quanto à gestão dos fundos de pensão. Assim sendo, é de esperar que o sistema tenha pedagogicamente criado mecanismos de proteção contra as investidas oportunistas das políticas do momento. Aqui, aliás, reside grande parte dos problemas jurídicos brasileiros: nossas leis são feitas para atender os “interesses do governo”, quando deveriam ser feitas para satisfazer os “interesses da nação”.
Nessa confusão de interesses, é bem possível que, no final, a conta caia no colo do beneficiário que, após muito sonhar com uma aposentadoria digna, verá apenas cores de ilusão. O resto da história é conhecida de todos: litígios em cascata de cidadãos injustamente prejudicados. Teremos que ver o futuro repetir o passado? Ou será que está na hora de pensarmos um sistema previdenciário sério, livre de demagogias e dos interesses volúveis de maiorias parlamentares eventuais?
Fonte: revista “Consultor Jurídico”
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