O atual sistema político brasileiro tem apresentado uma série de distorções. O que se convencionou chamar de presidencialismo de coalizão há tempos vem mostrando sinais de incapacidade de lidar adequadamente com a dimensão democrática da representatividade. Não é de hoje que instituições como os partidos ou o legislativo ostentam níveis baixíssimos de confiança por parte dos cidadãos. Ademais, uma das alegadas vantagens do sistema – que parte da academia enxergava – qual seja a governabilidade (ou capacidade de os executivos formarem maiorias para avançar suas agendas), foi posta em cheque pela atual crise política. Ainda que a crise que estamos vivenciando possua várias dimensões – como a econômica e fiscal e a perda de credibilidade política causada pelos desdobramentos da Operação Lava Jato – é claro que as falhas do atual sistema político contribuíram negativamente não só para o momento atual vivido pelo país, mas também pesaram sob as outras dimensões da crise.
A crescente fragmentação partidária tornou cada vez mais custosa a formação das coalizões dos governos. Além da repartição de cargos no Executivo para os diversos partidos, viu-se uma crescente utilização da distribuição de recursos não legais para se manter bases de apoio, questão que vem sendo também alvo da operação lava jato. Por outro lado, a crise de representatividade fez com que o afastamento da Presidente da República não viesse acompanhada de lideranças de qualidade no parlamento, que fossem vistas pela população com confiança, para que se pudesse avançar na resolução dos impasses gerados pela crise.
Há tempos os sinais negativos gerados por esse sistema político têm demandado respostas. Apesar de estar constantemente nos debates políticos, pouco ou nada se avançou a respeito. Momentos de grandes crises, apesar dos problemas concretos que geram, podem, entretanto, também ser ocasiões em que agendas críticas são avançadas, conseguindo romper com restrições impostas pelos vários interesses contrários envolvidos. O problema, sempre, é saber qual reforma. A dificuldade é que diversos modelos e soluções vêm acompanhados de aspectos positivos, mas eventualmente também negativos. Além disso, qualquer mudança de status quo é sempre vista com desconfiança por aqueles que foram eleitos pelas regras atuais, mas são os responsáveis por introduzir mudanças que podem diminuir suas chances de reeleição.
No âmbito das discussões, existem propostas de mudanças mais radicais, como a introdução do parlamentarismo, que teria como vantagem, por exemplo, uma maior flexibilidade na derrubada de governos impopulares, ou que perderam sua base de apoio. Outras propostas visam mudanças também substanciais no sistema eleitoral, introduzindo o voto distrital – ou distrital misto – que poderia aumentar a ligação do representante com o representado, além de potencialmente reduzir custos de campanhas. O problema é que nem sempre grandes crises são capazes de gerar o consenso necessário para fazer avançar este tipo de reforma.
Neste contexto, a melhor reforma não é a ideal. Diferentes modelos são opções políticas, que decorrem de escolhas. Não existem, na prática, modelos “ideais”, mas sim escolhas que visam privilegiar determinados valores ou dimensões em detrimento de outros. Assim, no atual momento, a melhor reforma é aquela possível, ou seja, a que seja capaz de conseguir algum consenso para que se avance. Ainda que não seja, ao menos em um primeiro momento, o caso de alterar radicalmente nosso sistema, seria possível limitar ao máximo suas distorções para, quem sabe futuramente, se pensar em uma mudança de maior alcance.
Neste sentido, existem ao menos dois pontos que precisariam ser atacados de forma emergencial. O primeiro é o da alta fragmentação partidária. O número (já grande) de partidos no Brasil viu, nos últimos anos, uma alta insustentável, fruto de incentivos do próprio sistema (como acesso a fundos partidários e possibilidade de negociar espaços no executivo), além do fracasso da cláusula de desempenho incluída na lei dos partidos de 1995, mas que foi considerada inconstitucional pelo STF. Para que a formação de coalizões não continue extremamente problemática, seria necessário revisitar este tema, impondo limites a atuação parlamentar e acesso ao fundo partidário, caso partidos não atinjam uma representação mínima. Além de cláusulas de desempenho, o fim das coligações proporcionais ajudaria a diminuir a chance de partidos menores, que acabam conseguindo eleger representantes com ajuda dos votos conquistados pelos maiores. O fim das coligações proporcionais ainda teria a vantagem de ajudar no déficit de representação. Pelo sistema atual, se o eleitor vota em um partido “x”, ele também acaba ajudando a eleger um representante de um outro partido “y”, muitas vezes de orientação ideológica ou programática diversa da intenção original do eleitor.
O outro ponto emergencial que precisaria ser revisto é o dos custos das campanhas. Além de gerar distorções graves na representação (aqueles com maior poder econômico têm maior probabilidade de influência nos pleitos eleitorais), o alto custo também gera incentivos para uma série de irregularidades, que redundam nos casos frequentes de corrupção e que as operações recentes do sistema de integridade brasileiro têm encontrado em todos os partidos políticos. A questão do financiamento eleitoral possui ainda maior urgência devido à recente interpretação do STF, de que empresas não podem ser doadoras de campanhas. De fato, como pessoas jurídicas não são cidadãs, não faz sentido que possam ter alguma influência no processo político (que deveria ser reservado às pessoas físicas). Não obstante, sem uma regulamentação e limitação dos gastos, a interpretação do STF pode ser letra morta, simplesmente ocasionando maior transferência das doações do “caixa 1” para o “caixa 2” das campanhas.
Atacando esses dois pontos, não será o fim das mazelas de nosso sistema político. Não obstante, pode ser um primeiro passo para uma reforma mais profunda, que envolva escolhas mais substantivas, podendo abranger a forma de governo (como o parlamentarismo por exemplo) ou mudanças também substantivas no sistema eleitoral (como a adoção do voto distrital ou distrital misto). Qualquer debate neste sentido só teria qualquer chance de prosperar em um parlamento sem o atual número de partidos, o que torna qualquer consenso proibitivo. O controle dos gastos de campanha também ajudaria a eleger um congresso mais representativo e menos comprometido com grandes interesses econômicos. A crise atual pode não ser o momento que todos esperavam para mudar de vez o sistema político brasileiro, mas pode ser um bom começo.
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