O desarranjo institucional brasileiro tem sido compensado por uma aguda hipertrofia de poder do STF. Com um Executivo fragilizado e um Congresso Nacional inorgânico – enredados em profunda incapacidade de construção de maiorias políticas virtuosas – o colendo STF acabou sendo insistentemente provocado a se manifestar sobre temas sensíveis à democracia, adquirindo ostensiva primazia na cena política nacional, quando, tecnicamente, deveria exercer sua autoridade com absoluto resguardo, moderação e comedimento.
Ora, um tribunal extraordinário não pode se liquefazer em ordinárias funções. Tal anômala situação contraria sua natureza suprema, banalizando a alta liturgia constitucional aos olhos da Nação.
Nesse contexto, é imperioso que o Supremo retome sua nobre e invulgar função institucional. Objetivamente, não cabe à egrégia Corte ser uma ambulância de UTI a questiúnculas políticas menores, cujas soluções devem ser buscadas no próprio tecido parlamentar em conjunção aos interesses governamentais estabelecidos. Sem cortinas, problemas políticos não são resolvidos por sentenças judiciais, por melhores que sejam a suas intenções, pois a dinâmica da democracia, antes dos limites da coisa julgada, requer ampla liberdade de conformação.
Por ilustrativa, merece destaque a insuperável doutrina de Paulo Brossard ao ponderar que “afeitos à aplicação da lei, consoante métodos estritamente jurídicos, é duvidoso que, de ordinário, os juízes tenham condições para decidir acerca de fatos que, por vezes, transcendem a esfera da pura legalidade, inserem-se em realidades políticas, vinculam-se a problemas de governo, insinuam-se em planos nos quais a autoridade é levada a agir segundo juízos de conveniência, oportunidade e utilidade, sob o império de circunstâncias imprevistas e extraordinárias” (impeachment, 1965).
Adicionalmente, o STF não pode aceitar ser um plantão judicial de poderosos encardidos, como se a ordem legal permitisse atalhos ou mágicas processuais de última hora, em total desrespeito ao caráter sistêmico da jurisdição. A justiça constitucional não é e não pode ser palco para improvisações ou gambiarras adjetivas. Sobre o ponto, vale destacar a lúcida e veemente advertência do min. Marco Aurélio de “que se jurisdicionalizou para se abreviar, para se queimar uma etapa importantíssima, a etapa do pronunciamento da Câmara dos Deputados, num verdadeiro, quem sabe, atalho, drible à atuação da Casa, pois somente a ela compete concluir esse processo administrativo que, mediante apelo ao que seria cláusula de ingresso no Judiciário, não pode ser transformado, sob a minha óptica, em um processo jurisdicional” (D.J. 24.08.2007).
Deitadas as bases acima, cumpre salientar que a democracia se resolve pela política, cabendo aos tribunais o rigor técnico da aplicação da lei. Em precedente histórico de 15 de abril de 1914, a inteligência do min. Amaro Cavalcanti conduziu a maioria da Corte a firmar tese no sentido de que “uma vez conferida a um dos poderes políticos, criados pela Constituição, uma atribuição para a prática de dado ato, ou para o uso de dada faculdade, é ele o único juiz competente da oportunidade e razões determinantes do respectivo ato, ou do uso de sua faculdade; o contrário seria a negação completa de sua independência”.
Como se vê, a confusão de competências institucionais é a raiz do desequilíbrio republicano, devendo ser evitada ou corrigida quando se manifestar. Aqui, não temos a opção de simplesmente deixar como está, pois não há democracia que resista a uma ordem de poderes desarmônica, sobreposta ou abusiva. Os excessos são sempre caros à República, cobrando, cedo ou tarde, preços com juros usurários. E nós, como cidadãos, já pagamos muito para pouco receber do Estado.
O fato é que a lógica da política – sujeita, muitas vezes, a necessidades urgentes, inadiáveis ou imprevisíveis – transcende à literalidade da norma posta, exigindo absoluto compromisso democrático na justa ponderação de interesses da sociedade contemporânea. Em outras palavras, a democracia exige diário e continuado exercício político, num processo de aperfeiçoamento social da legalidade, para, com tato e talento, fazer possível o que parecia insuperável.
Sim, a linha que separa a política do jurídico é tênue e sensível às pulsantes circunstâncias da realidade vivida. Com visão e experiência, o min. Sepúlveda Pertence disse não desconhecer “a delicadeza inerente à questão: no sistema brasileiro de universalidade da jurisdição do Judiciário (Const. art. 5°, XXV), corre a Justiça e, em particular o Supremo Tribunal, sobre um fio da navalha, entre a usurpação do poder alheio e a demissão do poder-dever de prestar jurisdição” (D.J. 24/8/07). Apesar da delicadeza posta, certo está que o juiz não é político nem o político, juiz. Se complementam, em necessário equilíbrio harmônico.
Por tudo, na atual contemporaneidade de velocidade frenética, as questões de natureza político-constitucional se tornarão ainda mais complexas, exigindo novas respostas e incidências do sistema de freios e contrapesos. Caberá, portanto, ao Tribunal Constitucional bem discernir o cabimento, a necessidade, as consequências e os limites de sua atuação institucional soberana. No todo, aquilo que supremo é não pode ficar sujeito a banalidades ordinárias. Afinal, só é alto aquele que guarda obrigatório distanciamento das baixezas da vida.
A chegada da hora exige ponderação reflexiva, pois, como bem disse o bom e velho Aliomar Baleeiro, “o único meio de o STF construir a Constituição, é por esse processo de tentar, errar e corrigir o erro”. E, entre naturais virtudes e imperfeições, é nosso dever cívico preservar a honra e dignidade das instituições republicanas.
Fonte: “Migalhas”, 27/10/2020
Foto: Reprodução/Arte Migalhas