“A revolta de Atlas”: objetivismo x praxeologia
Ayn Rand consubstanciou a ‘pedra filosofal’ da sua teoria objetivista na Magnum-opus Atlas Shrugged, traduzida recentemente pelo Instituto Millenium com o título de “A revolta de Atlas”. Atlas, gigante da mitologia grega, representa no enredo as indústrias e demais atividades privadas, obrigadas a suportar nos ombros um pesado fardo estatal, via altos impostos e regras igualitárias e restritivas.
Com a maestria de uma grande dramaturga, Rand envolve a obra com mistérios e tramas que cativam completamente o leitor, dando-lhe a impressão de que não está lendo uma obra filosófica, mas apenas um atrativo romance. Ademais, simplifica a teoria objetivista ao dividi-la em três grandes axiomas: existência, identidade e consciência. A vida é o axioma maior, principal objetivo moral do homem e que dá suporte aos demais valores morais para mantê-la. Rand, aristotélica confessa, explica, pela ‘lei de identidade’, que a realidade existe, é objetiva, e não pode ser falseada. Pela “lei de causalidade”, relaciona as identidades (boi e sapato, minério de ferro e automóvel), deixando implícito o concurso da mente humana, via ações produtivas, na transformação de uma identidade na outra. Nessa metamorfose é identificada a impossibilidade de haver consumo de maneira consistente sem que tenha havido antes produção. A consciência, com a interação de três valores objetivos adicionais — razão, determinação e amor próprio — responde pelas ações e escolhas do homem, necessárias à sua sobrevivência. No processo, os custos diretos e indiretos impostos pelo governo são considerados imorais e levam, com o tempo, à destruição social. Essa é a interpretação social objetivista.
A praxeologia, por outro lado, ciência da ação humana, desenvolvida por Ludwig Von Mises, sustenta que o indivíduo age buscando substituir uma situação menos satisfatória por outra mais satisfatória. Nessa ação ele ignora as propriedades físicas ou químicas dos bens: a satisfação é obtida pelos valores subjetivos deles. Não contesta os valores normativos da Ética à conduta humana, até porque as ações praxeológicas estão conectadas, de maneira indissociável, aos valores morais, assim como aos limites impostos pela natureza. Porém, discorda que os valores objetivos possam explicar, cientificamente, as ações humanas. Ainda que aceite o alto valor moral da água à vida, a satisfação do Homem não está na totalidade desse bem, nem na sua constituição química ou física, mas numa pequena porção dela, em valores subjetivos. Aliás, sem essa subjetividade, não há possibilidade de haver comércio, nem preço, nem mercado, quanto mais ciência econômica.
Uma divergência mais forte entre as teorias refere-se à formação do conhecimento. No objetivismo, a matéria-prima do conhecimento é a realidade objetiva, captada pela percepção sensorial. Na Praxeologia, o conhecimento vem a priori dessa realidade, não estando sujeito às comprovações empíricas, nem às regras de falseabilidade popperianas. Sabe-se, a priori, por exemplo, que todo imposto é um mal econômico e social e que essa verdade não consegue ser falseada, principalmente por dados estatísticos, como sói acontecer. Aliás, nesse aspecto, os praxeologistas seguem a máxima de Benjamin Disraeli: “há três tipos de erros: mentiras, mentiras detestáveis e estatísticas”.
Usando a realidade brasileira como padrão, caso “A Revolta de Atlas” fosse escrita por um praxeologista misesiano, os agentes privados, no papel de Atlas, não se revoltariam, nem fariam greve ou abandonariam suas empresas, deixando o governo à míngua, como Rand procede no romance. Não há prejuízo praxeológico aparente a esses agentes, que os levem a agir assim. Eles têm a liberdade de transferir os impostos aos preços finais dos bens ou de reduzir a produção, a renda e os empregos, adequando-os à menor demanda. Em ambos os casos, a maldade tributária fica difusa, enfraquecendo a resposta praxeológica. Mas a apatia da ação humana é mais forte no caso dos impostos indiretos. Embutidos nos preços, eles ficam ocultos, passando despercebidos aos consumidores. O resultado é um meio privado frágil e inerte e um meio burocrático forte e ativo, com alto poder de expropriação. Incentivado pelos gastos, as ações praxeológicas desse grupo crescem incontrolavelmente. E é completamente irrelevante, ao caso, se nas ações governamentais “as questões de verdadeiro e falso não entram em jogo; os princípios não têm qualquer influência; a lógica é impotente e a moralidade é supérflua”, narrado por Rand (p. 142, v. III). Afinal o homem é o mesmo, esteja no serviço público ou privado. As suas ações também não são regidas por princípios éticos globais, mas pela realidade subjetiva cotidiana.
Infelizmente, o estudo praxeológico nos conduz às mesmas previsões catastróficas do objetivismo, considerando o caso de “Atlas não se revoltar”: destruição econômica e social, ruptura da ordem democrática e assunção do oportunismo estatista totalitário. É questão de tempo…
Publicado no blog: http://www.professorperinger.blogspot.com/.
Atlas Shrugged é considerado um dos mais respeitáveis romances no mundo e uma boa perspectiva de educar os povos latinos ao correto papel do governo em sociedade. Precisa, porém, ser um pouco mais difundido entre os formadores de opinião, principalmente a mídia de uma maneira geral. Mas os professores, mais os da escola média, também precisavam receber essa importante obra. Nicolas
A bem da divergência, segue o link para discussão: http://artousosvic.blogspot.com/2009/12/tributos-e-propriedade.html
Acho que a função precípua do Estado – garantir a segurança dos indivíduos que o compõem – precisa ser resgatada como fim único da utilização da máquina.
Abraços cordiais,
Victor.
No Brasil este diagnóstico não é tão simples, no geral não há dois lados opondo suas posições. Há descendentes de ex-escravos que querem reparação pelo sofrimento passado, há indígenas que querem reparação por terem tido suas terras tomadas e há quem queira as riquezas prometidas aos seus avós que vieram da Europa, a conta não fecha. O povo brasileiro é ao mesmo tempo Atlas e governo.
Os nossos ‘grandes capitalistas’ são os que patrocinam os políticos e são patrocinados pelo governo.