A 29.ª Reunião do Conselho do Mercosul, realizada em San Juan, na Argentina, no início de agosto, ocorreu num momento particularmente delicado para os países da América do Sul.
A temperatura entre a Colômbia e a Venezuela, em consequência das acusações do então presidente Álvaro Uribe sobre a presença das Farc em território venezuelano, subiu a um ponto crítico com mobilização de tropas na fronteira. No âmbito da Unasul, os esforços diplomáticos para reduzir a crise fracassaram, pela ausência de uma clara liderança que pudesse produzir pontos de convergência e pela omissão de seu presidente, Néstor Kirchner, que nem sequer compareceu ao encontro.
A Venezuela ameaça suspender o fornecimento de petróleo aos EUA caso seja atacada por forças militares colombianas. Se isso vier a ocorrer, o que não parece provável, em vez de afastar os EUA do centro da controvérsia entre países sul-americanos, como quer o Brasil, Washington passaria a ter papel crucial. Como perto de 13% do petróleo consumido pelos EUA vem da Venezuela, a questão se transformaria em tema de segurança nacional e determinaria a tomada de medidas drásticas por Washington para defender seus interesses.
Chile e México decidiram reconhecer o governo de Honduras, deixando o Brasil isolado com os países bolivarianos contra o reingresso de Tegucigalpa na Organização dos Estados Americanos (OEA). As Farc passaram a ser tema na campanha presidencial brasileira, quando foram lembrados antigos laços do PT e de alguns de seus dirigentes com o movimento guerrilheiro colombiano.
Enquanto os problemas institucionais do Mercosul persistem e a desintegração regional se amplia com a crise Colômbia-Venezuela, o governo brasileiro parece estar mais preocupado com o conflito no Oriente Médio e em encontrar uma fórmula para resolver as divergências entre a comunidade internacional e o Irã, em razão do controvertido programa nuclear de Teerã.
As críticas do candidato da oposição José Serra ao Mercosul e a suas deficiências institucionais ecoaram fortemente na reunião presidencial.
O ministro Celso Amorim, em entrevista ao jornal Clarín, de Buenos Aires, na semana passada, disse que “as críticas ao Mercosul e a possibilidade de seu retorno a uma área de livre-comércio significam um grande retrocesso” e que isso não vai ocorrer “porque representa interesses de curto prazo”.
Em resposta indireta a Serra, certamente por inspiração brasileira, os presidentes afirmaram que o Mercosul é um desafio histórico, que compromete a vontade dos seus povos e constitui uma aliança estratégica para enfrentar os desafios do atual contexto internacional. Coincidência ou não, depois de mais de seis anos foram finalmente aprovados o Código Aduaneiro do Mercosul, a eliminação da dupla cobrança da Tarifa Externa Comum e a distribuição da renda aduaneira. Embora com prazos dilatados para entrarem em plena vigência, os acordos foram sinais positivos. Os presidentes reconheceram também a necessidade de avanços institucionais, recomendando retoricamente esforços adicionais para fortalecer o Parlamento, o mecanismo de solução de controvérsias e o sistema normativo, a fim de produzir resultados concretos para a integração regional.
O presidente Lula não perdeu a oportunidade de intrigar Serra com os países do Mercosul. Afirmou que “a elite, alguns empresários e políticos consideram perda de tempo a negociação com o Mercosul. Em vez de países pequenos, eles querem negociar com a Alca”, numa distorcida e equivocada simplificação, que esquece os entendimentos com a União Europeia, aliás, sem avanços efetivos até aqui.
Em mais um exemplo da influência da política externa nas negociações comerciais, os países membros assinaram um acordo comercial com o Egito, de pouca relevância do ponto de vista econômico, mas politicamente correto, para fazer contraponto ao já assinado com Israel, e anunciaram a negociação de outros com a Jordânia, a Síria e a Autoridade Palestina. Continuaram as pressões sobre o Paraguai para aprovar a entrada da Venezuela no Mercosul.
Talvez o ato mais significativo assinado no encontro de San Juan tenha sido o Acordo sobre o Sistema Aquífero Guarani, em negociação desde 2004, regulando a conservação e o aproveitamento sustentável pelos países do Mercosul de uma das maiores reservas subterrânea de água doce do mundo, com mais de 1 milhão de km2. Foram igualmente aprovados nove projetos, no valor de US$ 800 milhões, para a construção de estrada no Paraguai e a implantação de linhas de transmissão elétrica na Argentina, no Paraguai e no Uruguai, financiados pelo Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul, em larga medida integralizados com recursos financeiros do Brasil.
Os presidentes dos países membros do Mercosul trataram da crise entre a Venezuela e a Colômbia e concluíram, sintomaticamente, propondo a convocação de nova reunião da Unasul, agora em nível presidencial.
Durante a última presidência do Mercosul no governo Lula, o Brasil quer discutir os próximos 20 anos do processo de integração, quem sabe acreditando que o PT nesse período estará à frente do governo no Brasil. Na impossibilidade de avanços concretos na área institucional, como evidenciado pelo desrespeito à Tarifa Externa Comum, reconhecido pelo próprio titular do Itamaraty, o Brasil quer promover um esforço adicional para aumentar a visibilidade do Mercosul, para apoiar a participação social e para fazer um balanço sobre os rumos futuros da integração regional. A distância entre a retórica dos governos e a realidade dos fatos continuará aumentando.
Com a recuperação das economias dos países membros, o comércio intra-Mercosul vai crescer, independentemente da existência do grupo como uma união aduaneira.
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 10/08/10
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