Liberdade de expressão e democracia ocuparam grande parte da agenda da semana. Volto a elas porque, nesses casos, o tema nunca é antigo. E volto também porque talvez minha experiência possa acrescentar algo. Refiro-me à decisão de Crivella de censurar o beijo gay num dos livros da Bienal.
Eu o conheço um pouco. Em 2008, quando começava a campanha eleitoral, éramos candidatos. Ele me criticou por apoiar a relação de homem com homem. Respondi apenas que isso não era o mais interessante para mim naquele momento. Vivíamos uma epidemia de dengue, como hoje vivemos, e o que me interessava era a relação do homem com o mosquito.
Crivella está de novo no limiar de uma campanha eleitoral. É hora de tirar o tema do homossexualismo da cartola e tentar agrupar sua tropa de fiéis eleitores. Nada mais que isso. Agora não é apenas candidato. É o prefeito do Rio. Não é ingênuo a ponto de ignorar que sua ação vai promover a venda do livro alvo de sua cruzada.
Para ele, isso não tem muito importância. Não quer verdadeiramente combater o homossexualismo, mas agrupar alguns votos. Se os gays desaparecessem do mundo, ele ficaria amuado no seu canto, sem um tema para aquecer a campanha.
Foi muito animador ver a reação dos artistas e a pronta resposta do STF. Definiu-se um limite que dificilmente será transposto no Brasil, sem destruir também as bases da democracia.
No passado foi diferente. A batalha contra a censura do filme “Je vous salue, Marie”, de Jean-Luc Goddard, foi mais difícil porque aconteceu no auge de um plano econômico.
Sarney não tinha razão para temer. O filme, que exibi como um ato de desobediência em inúmeros lugares, se fosse às salas de cinema não iria durar mais do que dois dias, por falta de público.
Aqui na atmosfera da fronteira norte, diante da reação nacional a Crivella, sou mais otimista em considerar improvável uma teocracia puritana, do tipo do Irã, no país.
Na esteira do Crivella veio o post de Carlos Bolsonaro dizendo que a democracia era um instrumento limitado para mudar o país. De fato, seria possível concordar com ele, pois num contexto revolucionário, sem as formalidades legais, os governos podem andar mais rapidamente.
Mas cada vez que se enuncia uma tese desse gênero, é fundamental lembrar que a democracia é lenta, diria até sinuosa, mas a alternativa a ela tem um preço: a perda da liberdade.
Quanto à eficácia das mudanças revolucionárias, também sou cético. O socialismo, segundo alguns teóricos, fracassou simplesmente porque, ao liquidar o mercado, perdeu a chance de ter uma real política de preços. Todas as ditaduras, inclusive as de direita, mergulham em zonas nebulosas, perdem a noção do país real.
Os filhos de Bolsonaro são filhos do presidente, que, por sua vez, diz muitas frases inadequadas. Um deles, Eduardo, falou no fechamento do STF com um cabo e um soldado. O mais velho, Flávio, está mudando o curso da política brasileira por suas possíveis ligações com as milícias. O Coaf já mudou, Bolsonaro escolheu um procurador-geral sob medida e procura detonar a PF.
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Tanto as ações de Crivella como as frases da família Bolsonaro podem ser um balão de ensaio para testar a resistência democrática da sociedade. Nunca é demais voltar ao assunto, lembrar-se dele na próxima Bienal, onde quer que escritores e artistas se reúnam. É essencial também que os políticos se manifestem quando a democracia parece estar em jogo.
Quando os artistas se expressam por alguma questão social, ou mesmo pela sobrevivência da Floresta Amazônica, sofrem muitas críticas por estarem tratando de “algo que não lhes diz respeito”. No caso da liberdade de expressão, o tema é direto, sua própria sobrevivência está em jogo. Eles devem gritar mais ainda do que gritaram e, sinceramente, deveriam se preparar para isso.
Os Bolsonaros testam a sociedade. Não basta responder apenas a cada frase. É necessário que se comece a trabalhar uma frente, imune à instrumentalização da esquerda, mas que tenha muito claro os limites que não podem ser transpostos sem que a democracia entre em colapso. A liberdade de expressão é um desses marcos. O outro é escolher livremente nossos governantes e poder descartá-los de quatro em quatro anos. Os dois marcos se entrelaçam. A família Bolsonaro é livre para dizer absurdos; defensores de um Brasil tolerante e democrático, livres para empurrá-los ao ostracismo ou à dimensão real da extrema direita.
Fonte: “O Globo”, 16/9/2019